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Foto do escritorFranz Brehme

Dane-se seu herói, o que o ajudante pensa?

Texto original postado aqui

Traduzido por Franz Brehme


POV Parte Dois (Leia a Parte Um aqui)


Apenas algumas palavras para esclarecer a noção de distância psíquica na ficção. Foi notado por leitores da primeira parte deste ensaio que a distância psíquica pode entrar em jogo quando se constrói a relação entre personagens, naquilo que se refere a selecionar um POV. Anomandar Rake foi elevado afastando ele o máximo possível, mantendo-o misterioso e remoto, garantindo que os personagens cujo POV foi escolhido o vissem com medo, assombro ou alguma outra emoção extrema. E isto, com certeza, teve o efeito direto de elevar o nível geral de “ser foda” de Rake.

Mas em um sentido mais fundamental, distância psíquica tem tudo a ver com a relação do autor com os personagens, mesmo aqueles não empregados como personagens que contam seu POV. A melhor analogia a usar para descrever distância psíquica é ver como ela é manipulada em filmes e televisão, especialmente filmes, e isso é tudo feito com os ângulos das câmeras. E os ângulos das câmeras são a ferramenta primária de quem faz o filme para manipular o estado emocional e psicológico do espectador. Basicamente, o ângulo da câmera definido ao nível dos olhos de um personagem invoca empatia: convida o público a se identificar com aquele personagem (ou desafiar este, quando o personagem é desprezível). Planos ao nível dos olhos são planos humanizantes. Um ângulo de câmera que é feito de uma posição elevada, por cima do sujeito, olhando para baixo em direção a onde tal pessoa está, invoca (dependendo do contexto) pena, compaixão ou desprezo. Com efeito, essa posição te anuncia, enquanto público, como sendo superior ao sujeito. Uma posição de câmera inferior ou por de baixo de um personagem, criando o efeito de olhar para cima até aquele personagem, funciona para invocar noções de heroísmo, maior-que-a-vida, proeza, liderança, caráter icônico ou até mesmo mitológico de dito personagem.


Isso tudo soa crasso? Bem, assim o é. Mas você não precisa assistir O Triunfo da Vontade para ver o poder propagandístico dos ângulos de câmera. Todos o usam, de comerciais de camionetes a filmes de super-heróis, de filmagens de moda a estrelas de esporte. De fato, tornou-se tão ubíquo que nós mal percebemos isso, mesmo quando isso busca nos manipular psicologicamente, frequentemente de formas perturbadoras (repare nos modelos em propagandas e avalie o convite implícito nos ângulos das câmeras, então você vai ver muitos de planos de submissão [câmeras com ângulo para baixo] – o/a gato/a no divã – ou tomadas heróicas [o/a modelo vestindo sua jaqueta de couro de quinze mil e seus óculos de sol, etc.]: tudo lá para, subconscientemente, alterar seu pensar para acreditar naquilo que eles estão vendendo, e o que era mesmo o que eles estão vendendo mesmo?).


Ângulos de câmera estão lá para te dizer quem odiar, com quem se identificar com e quem adorar. E mais frequentemente do que não, cada arremesso é uma mentira, um engodo, uma impossibilidade (não, você nunca vai se juntar ao/à modelo no divã e mesmo que você possa, quem vai querer alguém tão submisso? A menos é claro que você esteja todo fodido) ou uma falsa promessa. Bom, esse é o enfoque cínico. Em contrapartida, ver uma vítima olho a olho é material bastante poderoso, justamente porque isso convida a empatia e humanidade.


Estes ângulos de câmera descritos acima sequer incluem o efeito psicológico da distância do sujeito (plano[1] longo, médio e próximo[2]), mas eu não acredito que preciso elaborar mais nesta analogia além daquilo que eu já fiz.


Como tudo isso se refere a um POV em ficção? Porque o autor é a câmera que sente. O quanto e quando ele sente está a cargo do autor, é claro, mas cada vez que uma decisão é tomada, ela tem efeitos na escrita.


Eu poderia tocar nesse ponto novamente. Enquanto autor, o que você sente, quando você sente e, por fim, porque você sente, tem um efeito direto sobre o que você escreve. POV envolve você selecionar onde colocar sua câmera. Distância psíquica é o trilho onde a câmera está e seus controles de elevação. Você pode operar aproximando, de baixo para cima, de cima para baixo; você pode deslizar em um plano longo; você pode até mesmo fazer aparecer gradualmente ou desvanecer[3].


Mas como e quando escolher? E o que acontece quando aquela câmera que com a qual você está trabalhando fica louca, sobe desce, abre fecha, controles girando, sendo acionados loucamente, em frenesi, de um lado para o outro, e isso em suas desesperadas e transpiradas mãos?


Uma das primeiras coisas que colapsa um POV (quando ele colapsa) é constante distância psíquica, quando o controle disse se foi ou, de fato, quando o escritor tem pouca ou nenhuma consciência da distância psíquica.


A distância psíquica precisa ser consistente? De forma alguma. De fato, ela provavelmente não deve ser. Haverá vezes em sua história em que você precisa se aproximar muito. Curiosamente, eu descobri durante workshops que eu ministrei que tais momentos são freqüentes quando o escritor iniciante faz exatamente o oposto: se afasta ao invés de se aproximar. Porque isso acontece? Vou chegar nisso daqui a pouco.


Considere o seguinte:


Quando ele deu uma olhada, ele viu Margo. Quando ele deu uma olhada pela segunda

vez ele viu a mulher penteando seu cabelo. Uma terceira olhadela mostrou a

Sra. MacComber[4] lutando com seu pente enroscado. Uma quarta olhada

e a figura caiu no chão em um emaranhado selvagem de cabelos. Uma última

olhada mostrou a esposa de MacComber sendo arrastada por seus cabelos.


O problema destacado acima é o da distância psíquica, mas especificamente relacionada ao ponto de vista emocional/psicológico/autoral do autor vis a vis Margo MacComber. A câmera ficou louca: fecha bem perto (Margo, uma íntima contração de Margaret), abre o plano (a mulher, sem nome), trilha para a esquerda (Sra. MacComber, cheio de formalidade, mas definido com relação a um esposo, também conhecido como um homem), volta de novo para trás (uma figura, detalhes desconhecidos) e, finalmente, volta até metade do caminho e vai um pouco para a direita (esposa de MacComber: uma posse).


Agora, vá à Internet e pegue uma cópia de The Short, Happy Life of Francis MacComber de Hemingway. Leia as primeiras cinco páginas anotando a convenção de nomes da Sra. MacComber. Note agora como isso lentamente nos puxa para dentro, mais para dentro, para combinar com a lente emocional sob a qual ela está atingindo uma crise. O POV sequer é dela: ele na verdade vai pulando um pouco. Mas o controle dessa distância psíquica é, bem, de tirar o fôlego.


Sorte de principiante? Um acidente? Um autor indiferente? Sem chance. Isso é distância psíquica em controle absoluto, desapiedado. E com intenção. Nós vamos nos aproximando e aproximando, sendo conduzidos até o momento em que ela está para chorar. Desgraça. A genialidade disso ainda me deixa completamente arrepiado.


Então sim, você pode mover a câmera. A chave é estar consciente de que você está fazendo isso e também para estar atento de que isso tem um efeito no leitor – esteja ele consciente ou não disso – e então se lembre de que se for mal feito, também terá um efeito no leitor (vai deixá-los perdidos). Distância psíquica é sutil e passa praticamente despercebida quando bem empregada.


Distância psíquica é um controle de mecanismo primário para POV. É relevante não apenas entre personagens, mas também entre o autor/narrador e seu(s)/sua(s) personagens. Você pode trilhar para dentro apenas para trilhar para fora (e isto é muito relevante para a Ambientação, como nós veremos, eventualmente), apenas faça-o com seus incrementos próprios (figura, mulher, esposa de MacComber, Sra. MacComber, Margaret, Margo) e faça-o para apoiar o contexto emocional da cena.


POVs de personagens específicos também seguem uma disciplina similar. Se você quer que um personagem conheça outro personagem, o qual ele não conhece, e por meio desse POV em terceira pessoa você usa os olhos do seu personagem para descrever a pessoa em frente, rastreie a maneira como a câmera se move: não faça 'O olho esquerdo dela era vermelho, os sapatos de couro, o carro sob o qual ela se apoiava era um Ford F-10 1971 com uma estúpida quantidade de fumaça se projetando acima da cabine, as meias cor-de-rosa e pompons, pesava quatrocentos e oito quilos[5], especialmente com o rinoceronte morto pendurado por sobre os ombros’. Em vez disso, considere, o "olho" do POV como um dispositivo de rastreamento, para que os detalhes que ele capta (que você usa para descrever a pessoa) sejam sequenciais de uma forma que faça sentido. Por exemplo, se você quiser que um personagem masculino seja grosseiro e desagradável, mentalmente despindo uma personagem feminina que ele acabou de conhecer, então use a descrição dele, daquilo que ele vê, de modo a que se mova para cima, para baixo, para cima e talvez para baixo novamente. Em outras palavras, se o primeiro detalhe na descrição for o calçado dela, a seguir vá para as canelas/joelhos/pernas, e para frente e para cima. Certo, um exemplo bastante grosseiro, mas aqui está o importante: explorando totalmente o POV Onisciente Limitado em Terceira Pessoa o autor pode fazer desse personagem um idiota lascivo, xucro, descortês, rude, objetificador, sexista do caralho... Sem que o autor tenha que escrever: 'Ele era um lascivo, xucro, descortês, rude, objetificador, sexista do caralho.’


É assim que a postura autoral pode manipular como o leitor vê um personagem ficcional (não aquele sendo descrito, mas aquele fazendo a descrição, o personagem epônimo do POV).


Agora, imagine esse repugnante exemplo acima vindo de um autor que não está ciente de que o herói do POV está olhando ela de uma forma realmente nojenta? Isso seria ainda mais repugnante, não seria? O ponto aqui é: este é o porquê um escritor precisa estar plenamente consciente da distância psíquica e POV, bem como dos efeitos que estes terão em como os leitores se relacionam com seus ou suas personagens. Porque um uso inconsciente ou descuidado de distância psíquica e POV é um livro aberto sobre a atitude do autor para com seus personagens, história e, muito provavelmente, também para com o mundo real.


Agora, o que está acontecendo quando autores iniciantes parecem estar instintivamente se afastando de certos pontos em uma história (e como isso se relaciona a POV e distância psíquica)? Seriam estas ocorrências aleatórias? Divagações da mente autoral? Minha experiência é de que não, nem distração aleatória nem acidental. Elas parecem ocorrer quando emoções realmente cruas estão para aparecer – não as emoções de um personagem (não diretamente), mas as do autor. É como se a história do personagem (e POV!) tivesse arrastado o autor muito próximo de algo extremamente pessoal, algo que exige certa desumanidade para se imergir. Pode ser um lugar de feridas emocionais, de velhas mágoas, de traumas profundos; ou pode ser um lugar onde o personagem está enfrentando uma escolha que o autor certa vez enfrentou e subitamente ambos estão cambaleando até a borda.


Uau, isso é pesado, não? Alternativamente, o escritor está instintivamente sentindo que a borda é agora uma corda bamba, com o risco bastante real de um mergulho no melodrama. Porque um autor liberado de qualquer restrição por vulnerabilidade emocional definitivamente não é um autor ainda no controle.


Agora, eu ainda ouso dizer isto? Algumas vezes perder o controle é uma coisa boa. Certo, isso pode resultar em um choro estrondoso e em queimar o teclado, durante o qual palavras não serão escritas (ha ha). Mas algumas vezes tais momentos de meia-noite são justamente o que nós precisamos. Surpresa, seu personagem POV te arrastou para cá! Sim, eles farão isso em certas ocasiões. Escrever não é divertido?


A dica que eu dou em workshops, quando vejo esse instintivo afastamento da distância psíquica, é fazer com que o autor tome nota disso, faça todos os questionamentos brutais que implicam esse afastamento, fique louco (consigo mesmo), dê meia-volta e mergulhe direto nisso com tanto destemor e crueldade quanto possível. Porque, como Hemingway disse uma vez, às vezes você precisa apenas sangrar. Em outras palavras, a escrita é tanto uma jornada para dentro quanto para fora de você mesmo, e você arrisca a veracidade desta última se você recuar da primeira.


Escrever ficção é uma grandiosa forma de se despedaçar para depois se reconstruir, mas fazer isso exige honestidade e uma coragem quase que idiota para voar na garganta (sendo que a garganta é a sua própria). Essa abordagem implacável é aplicável a todo tipo de ficção? Eu suspeito que deva ser. Eu sei que quando eu olho para meus próprios trabalhos que se inclinam para a sátira e a comédia, eu sou mais cruel lá do que em qualquer outra parte. Riso como um mecanismo de defesa.


Mas eu divago, então aqui concluirei meu ensaio.


Então... Exposição, Distância Psíquica e Ponto de Vista servindo, você adivinhou, a Caracterização. Vê como está tudo conectado? E enquanto escritor, como algo assim pode não ser excitante pra caralho, estourar os miolos? Leia “Short Happy Life” … Eu sei que é longo, mas vale à pena. Ah, e olhe para a incrível, completamente destemida mudança de ponto de vista nessa história. Eu roubei daí, você sabe. Provavelmente mais de uma vez.


Até,


Steve

[1] Nota do tradutor (NT): optei por “plano” para “shot”.


[2] NT: Close up.


[3] NT: fade in e fade out.


[4] NT: O sobrenome pode ser um jogo de palavras com o verbo “to comb”, ou seja, “pentear o cabelo”.


[5] NT: novecentas libras.

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