Em todos os sentidos, a obra "Forja da Escuridão", numa fictícia versão traduzida do título para nosso idioma, que é o primeiro volume da ainda incompleta trilogia Kharkanas, do Steven Erikson, é uma obra de arte.
A história nos remete ao passado dos Tiste,milhares de anos antes dos eventos narrados em O Livro Malazano dos Caídos. Vemos eventos e nomes conhecidos, mas também muita coisa nova. Vemos o que levou à Cisma entre os Tiste, considerado um fato mitológico no momento da série d'O Livro dos Caídos.
Mas para além da história e sua narrativa, o livro nos oferece grandes questionamentos e uma técnica narrativa em espiral, que é tão cara ao Erikson.
Ousei tomar a liberdade de traduzir uma cna maravilhosa, que além de mostrar o estilo de narrativo tão impactante do Erikson, também traz (como é costume do autor) questionamentos de cunho sociológico e religioso.
Um prato cheio para quem busca uma leitura profunda e que nos deixa pensando por días.
Largo aqui a cena traduzida para vocês (é uma tradução amadora, então me perdoem os erros e se tiverem considerações a fazer, estou totalmente aberto para arrumar/ajustar o texto.
Estou muito tempo sem ler coisas em português, então me perdoem também os erros de português, bem como de uso de sinais gráficos.
Pretendo escrever (ou filmar um vídeo) sobre esse trecho, sobre o que eu vejo na construção desta narrativa, mas já me digam, nos comentários, o que lhes pareceu este trecho.
Espero que gostem.
Os cavaleiros já tinham ido ao Monastério Yedan, por ordem de Resh, e a notícia tinha voltado na noite anterior à partida para Kharkanas. O Pai Skelenal estava a caminho. As irmãs haviam sucumbido. As treze mais velhas morreram. E no Grande Poço do Deus Antigo, a água fervia. O vapor fez uma coluna que podia ser vista da borda da floresta ao sul do convento.
Quando o Bruxo Resh anunciou que ele permaneceria ali, aguardando a chegada de Skelenal, T'riss voltou-se para ele e disse: "- Você não será necessário aqui. Sua Mãe recobrará a maior parte de suas faculdades. Ela falará em particular com seu companheiro de vida. Você me acompanhará, Bruxo Resh".
"- Por quê?" ele havia exigido, e isso chocou Caplo ao perceber que seu companheiro não havia sequer questionado o direito da Azathanai de comandá-lo.
"Quem mora na floresta ao norte de Kharkanas?", perguntou-lhe ela.
Resh encolheu os ombros. "- Excluídos, gente meio-selvagem. Caçadores furtivos, criminosos..."
“- Negacionistas”, disse Caplo.
T'riss disse: "- Sua mãe e seu pai precisam se preparar".
“Para o quê?”, perguntou Caplo.
"- Para o que devo mostrar ao Bruxo Resh, tenente. Começará na floresta, mas também no próprio rio e nas ruas de Kharkanas - até que a Mãe Escuridão desperte para o desafio".
“O que você vai dizer a ela?”, Resh exigiu com uma voz dura.
“- À Mãe Escuridão?”, T'riss juntou as rédeas improvisadas. “- Eu espero que não haja necessidade de palavras, bruxo. Com minha presença, ela entenderá”.
“- Você a ameaça?”, perguntou Caplo.
“- Se eu a ameaço, tenente, não haverá nada que você possa fazer a respeito. Nem você, nem os guardiões dela. Mas não, eu mesmo não represento nenhuma ameaça à Mãe Escuridão, e sobre isso você tem minha palavra, para pesar ou descartar como convier à sua natureza. O que eu trago é uma mudança. Ela vai acolhê-la ou resistir a ela? Só ela pode responder a isso".
Em silêncio, eles tinham saído do monastério, pela estrada sul que os levaria por uma rota bem ao leste do Monastério Yedan, antes de entrar no bastante diminuído braço mais oriental da Floresta Jovem.
As últimas palavras que T'riss disse, do lado de fora dos portões do monastério, foram: "- Agora entendo o mistério da água. Em paz, ela flui com claridade. Quando eu estiver diante da Mãe Escuridão, tumulto virá à água entre nós. Mas a promessa permanece - um dia, ela correrá clara mais uma vez. Agarrem-se a esta fé, todos vocês, mesmo enquanto o caos descender sobre o mundo". Ela encarou Resh e Caplo. “- O deus do rio me diz que a água de Dorssan Ryl é escura, mas nem sempre foi assim”.
Nem sempre foi assim. A mais antiga de nossas escrituras diz o mesmo. Esta Azathanai ressuscitou nosso deus. Esta Azathanai falou com nosso deus. Mas o que ela promete aos Tiste?
Caos.
Quando eles cavalgaram para dentro da floresta, porém, Caplo não viu nada de anormal, nada que desse credibilidade às palavras portentosas da Azathanai. Ele havia se voltado para o bruxo cavalgando ao seu lado, uma pergunta em seus lábios, mas Resh impediu com uma mão erguida.
"- Ainda não. Algo cresce. Coisas se agitam. Os sonhos atormentam mil mentes sombrias. Algo está de fato despertando. Veremos seu rosto quando de nosso retorno".
Caplo não possuía nada da sensibilidade possuída pelo Bruxo Resh e muitos dos outros na fé. Sheccanto certa vez lhe disse que mesmo quando criança ele havia se ajoelhado perante o pragmatismo; e ao fazê-lo, havia renunciado à sua capacidade para imaginar. Existia uma dicotomia entre as duas e, enquanto forças da personalidade, elas muitas vezes travavam combate. Para alguns, no entanto, havia um acordo. Os sonhos definiam o objetivo, o pragmatismo, o caminho para ele. Dizia-se que aqueles que possuíam esse equilíbrio eram talentosos, mas isso não lhes facilitava a vida. Os de mente crua, que viviam vidas nas quais os obstáculos se erguiam ante eles a cada passo, eram rápidos em levantar obstáculos semelhantes diante daqueles ditos 'talentosos' e eram, muitas vezes, inflexíveis em sua crença de que isso era para o melhor, e justificavam suas opiniões com palavras como 'realista', 'prático' e, é claro, 'pragmático'.
Caplo tinha muita simpatia por aqueles que, por conselho e ridicularização, mantinham sob rédea curta os sonhadores irrestritos do mundo. Ele via a imaginação como algo perigoso, às vezes mortal em sua imprevisibilidade. Entre as muitas vítimas que ele havia assassinado, foram as criativas as que lhe causaram os maiores problemas. Ele não podia segui-los nos caminhos de seus pensamentos.
Dito isto, tantas outras coisas haviam sido renunciadas na perda de sua própria imaginação. Era difícil sentir qualquer coisa pela vida dos outros. Ele não tinha interesse, além do profissional, em procurar por empatia, e não via razão para mudar sua própria perspectiva sobre questões de opinião, já que suas opiniões estavam profundamente enraizadas no pragmatismo e, portanto, se revelavam, em última análise, incontestáveis.
Por tudo isso, enquanto cavalgavam para dentro da franja fina da floresta antiga, com o ranger apertado da montaria da Azathanai em um ritmo incessante atrás deles, Caplo sentiu um arrepio que nada tinha a ver com a súbita queda da luz do sol. Ele olhou de relance para Resh para ver o rosto ríspido do homem embainhado em suor.
“- Ela desperta seu poder novamente?” perguntou ele em tom baixo.
Resh simplesmente balançou a cabeça, um gesto singular de negação tão incaracterístico do bruxo que Caplo ficou assustado e, de fato, um pouco assustado.
Ele olhou ao redor, os olhos se estreitaram sobre as sombras entre as árvores alinhadas com a estrada. Ele viu lixo amontoado nas valas, e lá, uns trinta passos mais ao fundo da floresta, à sua direita, um casebre esquálido envolto em fumaça de lenha, com o que poderia ser uma figura encurvada sentada atrás de um fogo latente - ou talvez não fosse nada além de uma rocha ou de um toco. O ar era fresco na estrada empedrada, com odor a decomposição, ácido o suficiente para morder a parte de trás de sua garganta a cada respiração. Havia pouco som, um cão que latia em algum lugar ao longe e as pisadas próximas de cascos de cavalos sobre as pedras lamacentas.
Nas outras vezes em que Caplo cavalgou, no seu caminho de e para Kharkanas, ele mal havia notado este trecho de floresta. Parecia haver tantos tocos quanto árvores em crescimento, mas agora ele percebeu que isto era verdade apenas para a área imediatamente ao longo da estrada. As coisas se tornaram mais selvagens na floresta, onde a escuridão era uma mortalha que nenhum olhar podia perfurar e para viajar através disso seria necessária uma tocha ou lanterna. Era surpreendente pensar que as pessoas viviam nesta floresta, escondidas, confinadas a um mundo cada vez menor.
“- Eles são livres", disse Resh em voz fraca.
Caplo se sobressaltou. “- Meu amigo, de quem você fala? “
“- Livre de formas perdidas para o resto de nós. Você vê seus limites, sua aparente pobreza. Você os vê como caídos, esquecidos, ignorantes".
“- Resh, eu sequer os vejo”.
“- Eles efetivamente são livres”, insistiu Resh, suas mãos enluvadas fechadas em punhos no chifre da sela onde agarravam as rédeas. “- Sem dízimos, sem tributos para pagar. Talvez até a própria moeda seja desconhecida para eles e cada medida de riqueza está ao alcance de mãos capazes e à vista de olhos amorosos. Caplo, quando a última floresta se for, assim também acabarão as últimas pessoas livres do mundo".
Caplo considerou isto e depois encolheu os ombros. "Não vamos notar a perda".
“- Sim, e esta é a razão: eles são os guardiões da nossa consciência'.
“- Não é de admirar, então, que eu nunca os veja”.
“- Sim”, disse Resh, seu tom retirando todo o humor das palavras de Caplo.
Irritado, inquieto com este bosque, Caplo se mostrava pouco à vontade. "- Não nos serve de nada elevar os empobrecidos".
“- Não falo daqueles que fugiram de nosso modo de vida”, respondeu Resh, “embora se possa argumentar que por escolha ou por acidente eles caminham em direção à verdade, enquanto nós mergulhamos sempre em um mundo de auto-ilusão. Não importa. Aqueles de quem estou falando são aqueles que nunca foram domesticados. Eles vivem ainda nesta floresta - talvez apenas uma centena ou mais sobram. Não se pode imaginar que seus números sejam maiores do que isso. Nós levamos suas casas, árvore por árvore, sombra por sombra. Saber demais é perder a maravilha do mistério. Ao responder cada pergunta, esquecemos o valor de não saber".
"- Não há valor em não saber. Enrole essa sua grossa pele, Resh, e sacuda-a desse disparate. O valor de não saber? Que valor?”
“- Você não tem resposta e por isso conclui que nenhuma existe. E aí, em sua reação, ó Pálido Desgraçado, está a lição”.
“- Enigmas agora? Você sabe o quanto eu não gosto de enigmas. Ande logo com isso, então. Diga-me o que me falta. O que se ganha por não saber?”.
“- Humildade, seu tolo”.
Atrás deles, T'riss falou, sua voz carregada com clareza não natural. “- Em ritual vocês rastejam. Eu vi isso no pátio, muitas vezes. Mas o gesto era rotina - mesmo em seu recém-descoberto medo, o significado desse rastejar se perdeu".
“- Por favor”, rosnou Resh, “explique-se, Azathanai”.
“- Eu vou. Vocês esculpem um altar de pedra. Vocês pintam a imagem das ondas sobre a parede e assim conformam um símbolo daquilo que vocês gostariam de adorar. Vocês lhe dão um milhar de nomes e imaginam um milhar de rostos. Ou um único nome, um único rosto. Depois vocês se ajoelham, ou se curvam, ou se deitam no chão, tornando-se abjetos em servidão, e ainda chamariam o gesto de altruísta perante seu deus e veriam em sua postura humildade justa".
"- Tudo isso é suficientemente preciso", disse Resh.
“- Justamente", ela concordou. "E com isso vocês perdem o significado do ritual, até que o próprio ritual seja o significado. Estes não são gestos de subserviência. Não são expressões de rendição de sua vontade a um poder maior. Esta não é a relação que seu deus busca, ainda assim é a relação sobre a qual vocês insistem. O deus do rio não é a fonte de sua adoração; ou melhor, não deveria ser. O deus do rio fita os olhos de vocês e anseia pela sua compreensão - não de si mesmo como um poder maior, mas compreensão do significado da existência dele.”
“- E esse significado é?” exigiu Resh.
“- Lembre-se do gesto de rastejar, bruxo. Vocês o fazem em reconhecimento de sua própria humildade. Os poderes de um deus são imensuráveis e perante eles você não são nada. Logo, vocês adorariam seu deus e entregariam suas vidas nas mãos dele. Mas ele não quer suas vidas e nem sabe o que fazer com suas almas desejosas e indefesas. Em ritual e símbolo vocês perderam a si mesmos. Pudesse o deus fazer vocês entenderem, faria vocês entenderem esta simples verdade: a única coisa digna de adoração é a própria humildade".
Caplo resmungou e depois fez que ia falar algo, para zombar da afirmação dela - mas ele nem precisava do gesto de admoestação de Resh para morder sua língua. Era verdade que ele não tinha imaginação, mas mesmo ele podia ver o padrão de comportamento previsível, nesta confusão de ritual e significado, símbolo e verdade.
“- Então”, disse Resh em tom ríspido, “o que nosso deus quer de nós?”.
“- Querida criança”, disse T'riss, “ele quer que vocês sejam livres”.
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