No último post, comentei sobre Steven Erikson, autor da série O Livro Malazano dos Caídos. Pois bem, dia 7 de julho de 2018 o autor posto e seu blog um interessantíssimo ensaio sobre Pontos de Vista em uma obra literária, tomando como exemplo sua própria série, em especial o personagem Anomander Rake.
Tomei a liberdade de traduzir, já que nem todos possuem acesso ao idioma inglês. O texto original pode ser acessado em https://steven-erikson.org/anomander-rake-and-point-of-view/.
Um aviso a todos, em especial aos profissionais da tradução e entendidos no vernáculo, peço que me perdoem pela eventual má qualidade da tradução.
Caso tenham alguma crítica à tradução, me avisem.
Desfrutem.
Anomander Rake e Pontos de Vista
tradução livre e sem fins comerciais por Franz Brehme
Meu primeiríssimo rascunho de Jardins da Lua empacou após cerca de três páginas. Eu gastei dez minutos relendo o que eu tinha escrito até aquele ponto e então eu apertei o portão “deletar”. Não foi um começo comum para mim. Nesta altura eu já havia feito um bacharelado em Escrita Criativa na Universidade de Victoria e um Mestrado na Universidade de Iowa. Eu havia encontrado um editor para minha primeira coleção de histórias curtas e continuava seguindo para que, o que quer que fosse que eu estivesse trabalhando no momento, tivesse uma conclusão.
Então, qual era o problema? Aqui estava eu, prestes a imergir no mundo Malazano e eu conhecia aquele mundo de trás para frente. Eu conhecia seus participantes, sua história, tudo o que eu precisava. Eu até tinha feito uma planilha na parede para minha marcha, cena-a-cena, através da obra. E, por fim, eu tinha o roteiro de um longa metragem em mãos que detalhava, ao menos, um terço da novela, talvez mais. Mas o que era essa muralha de tijolos na qual eu havia mergulhado completamente minha cabeça?
Em histórias curtas (onde aprendi por primeira vez), normalmente nos atemos a um ou no máximo alguns poucos pontos de vista (POVs[1]). Isto é, a visão de um personagem central em um conto. E normalmente minha escolha e controle de POV era muito boa: isso era inicialmente uma habilidade instintiva minha (ou seja, eu não sabia o que estava fazendo, mas eu estava fazendo direito), e depois, umas vez que todo o conceito de POV foi gravado em mim, eu estava muito confiante de que era uma de minhas forças na escrita.
POV é uma coisa curiosa. Existem variantes e tudo já foi usado, uma vez ou outra. Basicamente, POV é o veículo que o leitor dirige em direção ao interior da história. É composto de voz, estilo, nível de dicção e caracterização. Também deriva da posição narrativa e esta tem rótulos: Primeira Pessoa (usando o “Eu” como em “Eu caminhei para dentro da piscina de lava”), Segunda Pessoa (usando “você” como em “Você caminhou para dentro da piscina de lava”), Terceira Pessoa (“Ele caminhou para dentro da piscina de lava”).
Existem subdivisões, variações taxonômicas denominadas “Onisciente” e “Onisciente Limitada”, que podem ser aplicadas aos rótulos originais com graus variados de eficácia (Primeira Pessoa Onisciente: “Eu sou Fred e aqui estou, caminhando para dentro da piscina de lava. Eu morro. Agora eu sou Sally, olhe para mim caminhando para dentro...”; ou Segunda Pessoa Onisciente Limitada: “Por razões que você não está preparado para explicar, você anda para o meio da rua até que um caminhão passa por cima de você.” Ou Terceira Pessoa Onisciente: “Ele odiava a escola desde o dia em que Gloria Dweeb fez uma careta para ele na Segunda Série e, agora, ele estava pensando em Gloria Dweeb e naquela careta dela no momento em que ele correu e pulou para dentro da piscina de lava no meio da rua. Porque o mundo é uma merda e qual é o objetivo disso tudo mesmo?”).
Há duas convenções atualmente na ficção: “Primeira Pessoa Onisciente Limitada” e “Terceira Pessoa Onisciente Limitada”. “Onisciente Limitada” significa basicamente que você (como autor e depois como leitor) possui o privilégio de entrar na cabeça do personagem, bisbilhotar seus pensamentos, medos, motivações, racionalizações, etc., e tão importante quanto, ver a história/mundo por meio dos olhos daquela pessoa. O uso da primeira pessoa dessa forma permite que você possa se identificar diretamente e intimamente com o “Eu” personagem. O uso da Terceira Pessoa te dá mais espaço de manobra, embora basicamente você esteja passando um tempo com um personagem em particular e você escreva cenas desde os olhos deles.
Uma chave central para “Limitada” é que, enquanto autor, você pode escolher revelar um pouco do mundo interno do personagem, ou muito; e você não precisa ser (muito) consistente dependendo da cena em mãos (embora geralmente, consistência seja uma coisa boa. Dito isso, podem aparecer certas situações nas quais você quer se afastar – trazendo o leitor junto com você – de modo a alcançar o efeito emocional que você está procurando: se eu tivesse algum conselho para dar nesse sentido seria “não faça isso com frequência”, você pode acabar descobrindo que seu estilo narrativo adquiriu o hábito da aversão, o que poderia, por sua vez, desconectar repetidamente o impacto emocional da sua escrita). Ou você pode querer ser altamente seletivo ao fazer uma aproximação a um personagem, indo lá apenas nesses momentos em que você quer martelar a experiência visceral pela qual seu personagem está passando.
“Ilimitada” ou “Onisciente Completa” (um estilo comum de um século ou dois atrás) efetivamente confia ao narrador a inteireza da história, armado com níveis de consciência e perspicácia que são, simplesmente, divinos. Este estilo caiu em desuso, ao menos na ficção popular, mas ainda aparece de vez em quando. Com a Onisciente Completa o narrador sabe o mundo interno de cada personagem e provavelmente tem uma opinião para cada um deles, que vai ser evidenciada no tom, estilo e voz (ou não, se a voz narrativa for plana, sem tom e relatorial). Implicitamente, a narração Onisciente Completa projeta superioridade e, frequentemente, desprezo mal disfarçado pelos personagens (a exceção é, novamente, o estilo relatorial plano). E esta é uma das razões pelas quais pode não ser muito popular nos dias de hoje, vez que nós leitores preferimos tomar nossas próprias decisões, muito obrigado. Dito isto, uma história Onisciente Completa escrita com um desprezo encharcado pode, em determinadas ocasiões, ser bastante divertida de se ler.
O estilo plano, relatorial mencionado acima é provavelmente o estilo dominante na ficção literária contemporânea. É uma abordagem clínica, como uma câmera. Escritores dessa abordagem podem discutir comigo tudo o que eles quiserem, que estão sendo objetivos ao adotar esse estilo. Eu não compro essa ideia nem por um minuto. Nós não somos câmeras e mesmo fingir ser uma envolve uma série de filtros de distorção que ou você tem a honestidade de reconhecer ou a audácia de fingir que não existem. Uma câmera não sente dor por trás de seu olho que não pisca: pode um humano dizer o mesmo? Se assim for, esse humano é um monstro.
Dito isto, geralmente a primeira linha de defesa de um escritor quando desafiado a escrever uma cena em particular, normalmente uma cena censurável (ou seja personagens fazendo coisas censuráveis): na verdade, “Eu estou escrevendo como eu a vejo em meus olhos. Não é meu trabalho julgar. Isso é sua função”. Em um sentido geral, essa é uma primeira linha de defesa decente. Um escritor busca verossimilhança, depois de tudo, um sentimento de “isto é como é e talvez você tenha o privilégio, enquanto leitor, de olhar para o lado, mas enquanto escritor, eu não”. Eu mesmo usei em ocasiões (certa cena de aleijamento em O Livro Malazano dos Caídos, ou uma cena de estupro em “Forge of Darkness”). O autor não deve piscar e o estilo invocado nessas cenas é o mais relatorial possível, despido de emoção e brutalmente cínico: não importa quão explícitos os detalhes, a distância psíquica é mantida, tal como uma câmera.
Eu considero essa primeira linha de defesa como sendo válida. Tanto quanto possível. Mas eu seria um mentiroso se então eu disser que eu não tive nenhuma experiência visceral ou emocional escrevendo essas cenas. De fato, se isso fosse verdade, eu seria um sociopata. O ponto é que escritores têm razões para escrever as cenas que eles escrevem e só podemos esperar que essas razões possuam uma fundação moral sólida.
De qualquer forma, este é um exemplo de como o estilo pode mudar baseado no conteúdo. Como isso se relaciona com POV? Apenas para mostrar que POV é maleável mesmo quando adere a suas regras básicas e que Terceira Pessoa é provavelmente o mais flexível POV de todos. Considere o POV Terceira Onisciente Limitada que eu escolhi para O Livro Malazano dos Caídos. Todos aqueles personagens! Bem, se eu mantivesse uma única voz (e estilo), um nível de dicção consistente através dos personagens, se eu nivelasse o ritmo das sentenças, o padrão das sentenças e seu comprimento e me apegasse a uma estrita profundidade de internalização de personagens (nós entramos na cabeça de todo mundo apenas este tanto), a série teria sido ilegível. Ao invés, considere a Terceira Pessoa Onisciente Limitada em Beak em oposição a, por exemplo, Duiker. Examine o comprimento da sentença, o nível de dicção, a profundidade de perspicácia. Compare e contraste, tal como nós fazíamos nos trabalhos de escola.
Se você vai trabalhar com vários POV de personagens, misture um pouco. Não, misture muito.
Ao escrever ficção, POV é uma decisão em escala macro, quando tudo o mais está em escala micro (exceto pela trama). Por alguma razão, eu entendi isso logo no comecinho da minha carreira como escritor, no meu âmago, e meus instintos sobre quem escolher para um POV, quando e quão profundamente, bem, isso sempre fluiu instintivamente para mim.
Então, porque eu desprezei as três primeiras páginas do meu primeiro rascunho de Jardins da Lua? Porque eu escolhi um POV impossível. Anomander Rake. De fato, isso foi uma descoberta seriamente frustrante. Anomander foi o primeiríssimo personagem que montei e joguei em AD&D[2]. Campanha após campanha, eu vivi e respirei o cara, caramba. Por anos!
Ainda assim, apenas dez minutos pensando sobre isso (antes de deletar aquelas três primeiras páginas) me deram a resposta de porque isso não estava funcionando. Como infernos um escritor de vinte-e-alguma-coisa conseguiria convincente e autenticamente transmitir o POV de um personagem que era um par de centenas de milhares de anos mais velho? Resposta: ele não poderia. Sem dúvida que eu poderia escrever coisas, muitas delas, mas não de uma forma que fosse satisfazer minha verossimilhança. Nem por um minuto.
Anomander Rake. Esse cara é remoto. Inferno! A primeira vez que nós o vemos ele está de pé, na borda da Cria da Lua, cerca de cem pés[3] do chão. Essa introdução produz um efeito e eu teria sido um idiota de não entender qual era esse efeito. E o que ele exigia.
Traga o Branquinho (lembra desse negócio?). Apague o nome Anomander Rake como POV em todos os lugares daquela grande planilha na parede. Não posso fazê-lo, então não irei fazê-lo (ser humilhado como escritor é, honestamente, uma coisa boa! Apenas não transforme humilhação em um ataque a sua crença em si mesmo. Não é disso que se trata – você é mais! Trata-se de uma lição e nenhuma lição é válida se você não aprender com ela).
Sério, foi uma merda tirar meu personagem favorito. Mas, quase que por acidente, algo diferente aconteceu, quase que inesperadamente, e de alguma forma eu não compreendia a extensão completa disso acontecendo até bem depois de que o livro estava escrito e, efetivamente publicado (em outras palavras, anos!). Mas deixe-me voltar um pouco.
Anomander Rake ainda tinha seu papel a ser desempenhado na novela (e na série), significando que ele ainda iria aparecer de novo e de novo, normalmente de alguma forma fodona. E ele iria aparecer para tomar decisões (e cometer erros!) que iriam chacoalhar o mundo. Mas agora, com seu POV eliminado, nós iríamos ter que vê-lo por meio do POV de outros, muitos outros. E ainda mais POVs iriam ouvir sobre ele, ou ter suas crenças sobre ele, medos e outras respostas viscerais também. De fato, tudo que iríamos descobrir sobre Anomander viria de todos aqueles POVs orbitando ele. Eu fiz uma decisão macro, certo? O POV de Rake estava fora.
Pule para frente anos e anos. Jardins da Lua encontra um editor, o livro sai, fãs iniciam discussões online. E eu estou lendo os comentários e estou carrancudo: O que é isso? Todos estão ficando loucos pelo Anomander Rake? Eles estão delirando pelo quão foda ele é. Mas… mas?
Oh. Bem, foda-se eu. Em retrospecto, tudo faz sentido. E isso tem a ver com algo que é parte integrante de toda ficção: distância psíquica. Veja, algo curioso acontece quando você retrai o personagem, quando você eleva o nível de “ser foda” através dos boatos, medo e terror vindos dos POVs de outros personagens. Quando as pessoas sentem o efeito de sua chegada (Baruk). Quando personagens relativamente pouco poderosos conseguem testemunhar o que Rake faz (Crokus). Quando pessoas correm e se escondem apenas de ouvir seu nome (Quick Ben e Kalam). Porque, por meio desses POVs que eu escolhi, o leitor dirige-se para dentro do mundo e, dentro desse mundo, ninguém fode com Anomander Rake.
Então, como foi possível perceber, aquela primeira visão de Anomander Rake, lá em cima contra o pano de fundo da Cria da Lua, bem, foi presciente pra caralho. Na verdade, isso simbolicamente te disse (eu!) que isso é o mais perto que você conseguirá chegar de Anomander Rake. Algumas vezes, a forma como você escreve uma cena se transforma em um letreiro gigante para você mesmo: PRESTE ATENÇÃO AQUI, IDIOTA. VIU? AQUELE É ANOMANDER RAKE LÁ EM CIMA E ISSO ESTÁ CERTO, VOCÊ NÃO PODE ALCANÇÁ-LO. Bem, eu frequentemente sou um idiota sobre as coisas, mas não por muito tempo. E esse letreiro luminoso foi uma lição valiosa para aprender, e eu aprendi.
POVs constroem seu mundo ficcional. Quem você escolhe para isso é crucial. Você pode escrever um POV foda? Sim. Claro que você pode, mas mantenha na sua mente que escolhendo esse personagem para um POV, não importa quão foda eles sejam, eles serão humanizados (trazidos até o nível mortal do leitor) e se você tentar fazê-los infalíveis você estará arriscando muito, exceto se você estiver escrevendo uma paródia, tal como o Rato de Aço Inoxidável, Alívio, Matt Elmo, etc.) e cedo ou trade, algum fã irá zombar e dizer “certo, conta outra”. Perda de verossimilhança, em outras palavras.
Agora, aqueles de vocês que leram o Livro Malazano dos Caídos devem estar pensando sobre Anomander Rake e exemplos em que o POV foi... enlameado, e sim, vocês estão certos, eu orbitei muito perto dele a cada instante.
E eu penso, uma única vez (não conferi), eu até mesmo trapaceei. Deslizei para dentro de seu POV, mas limitado por regras muito estritas de distância psíquica, estilo, tom e todo o resto. Se vocês desejam um desafio, tentem encontrar. Assim que alguém identificar, eu irei usar o exemplo para seguir para a Parte Dois do meu ensaio sobre POV.
Por fim, estou aberto às suas perguntas e dou boas vindas à discussão e ao debate, por isso, perguntem!
Saudações
SE
[1] Nota do tradutor: Iniciais de “Point of View”, em inglês.
[2] AD&D: Advanced Dungeons & Dragons, famoso jogo de RPG (Role Playing Games, ou Jogos de Interpretação de papéis).
[3] Convertendo a unidade métrica, algo em torno de trezentos e cinco metros.