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Foto do escritorFranz Brehme

“Pedo Mellon a Minno”: uma resenha de “A Amizade em O Senhor dos Anéis”

Atualizado: 22 de ago. de 2019

"Realmente, o mundo está cheio de perigos, mas ainda há muita coisa bonita, e, embora atualmente o amor e a tristeza estejam misturados em todas as terras, talvez o primeiro ainda cresça com mais força" - Haldir para Merry em 'A Sociedade do Anel'

Este texto principia com o fragmento de um dos diálogos de A Sociedade do Anel em que é possível vislumbrar imensurável pesar e consternação, evidenciando o quão poderoso o Inimigo se tornou, o quão longe sua mão negra se alastrou por sobre a Terra-média.


Trata-se do episódio em que a Sociedade é vendada para entrar em Lórien: o anão Gimli e todos os seus companheiros ingressam às cegas na terra de Galadriel e Celeborn. Legolas, um elfo, se entristece profundamente com isso, pois seus parentes o recebem com cauela naqueles tempos sombrios, ainda que por proteção...


Citar o excerto acima, contudo, não foi desprovido de intenção: ele se articula em duas vertentes, a do pesar, acima já descrita, e também como contraponto a tantas incertezas e dores que o Inimigo provoca. Nesta cena específica Haldir consegue manter acesa a chama da esperança, chama esta que somente será apagada quando o Amor deixar de existir.


E é justamente no Amor, considerado como uma virtude desde antes dos tempos do Estagirita até a contemporaneidade de Sponville e seu pequeno tratado das virtudes (e para além dele), que está a chave para a conclusão da Demanda do Anel, mais especificamente no Amor-Amizade. Cumpre já fazer esta importante associação entre o Amor e a Amizade desde logo, vez que, tal como ensina C.S. Lewis, a amizade é um dos quatro aspectos que o Amor pode assumir.


Em tempos de obscurantismo intelectual, de superficialidade das relações, de sentimentos descartáveis e de pouco diálogo dialético, falar sobre a amizade e sua construção é dos feitos mais sublimes e valorosos que alguém pode almejar e alcançar. Cristina Casagrande executa tal mister com brilhantismo em seu “A Amizade em O Senhor dos Anéis”, assumindo um munus de alta responsabilidade: passa a ser um estandarte brilhante, que atrai olhares quando o assunto é a amizade e sua prática (e tenho certeza de que deve ser muito cobrada disso em sua vida diária...).


Referida obra pode soar para alguns como uma obra de auto-ajuda, mais uma obra que toma carona numa obra que volta à evidência com a futura série da plataforma digital Amazon Prime. Que a capa bela e o título simples não enganem o leitor incauto, pois trata-se de uma jóia acadêmica brasileira: o tema foi garimpado e lapidado como trabalho a ser apresentado para uma banca de Mestrado em Literatura nas entranhas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E, por recomendação da banca, a jóia foi polida com esmero para formar esta linda edição publicada pela editora Martin Claret.

Com uma linguagem simples, mas trabalhando conceitos elevados e complexos, Cristina nos apresenta o conceito de amizade em Aristóteles e em São Tomas Aquino, conceitos estes que serão fundamentais para o desenvolvimento de todo este magnífico trabalho. Sem eles, e sem compreendê-los bem, o leitor poderá até não ter dificuldades de seguir, mas perderá o gosto doce do “miruvor” que se segue.


Confesso: foi um desafio (agradável) enfrentar alguns temas tão pouco afetos à minha realidade, mais especificamente aqueles conceitos ligados à teologia cristã – não se tratam, contudo, de temas alheios à experiência humana, já que o Amor e a Amizade transmitem toda a carga de humanidade que as obras de JRR Tolkien possuem. Vale enfatizar também que a construçao da obra ajuda muito: Cristina não parte da premissa de que o leitor já conhece os conceitos norteadores do trabalho, os explica e enuncia, com prazeroso rigor acadêmico, nunca pedante.


A obra, portanto, busca traçar conceitos com os quais certamente era familiar, pois começou sua vida acadêmica com o classicismo e também era um fervoroso cristão. Dito isso, importa ressaltar, que Cristina busca trazer esses conceitos para aproximá-los da obra O Senhor dos Anéis e mostrar que eles estão lá e permeiam a construção da narrativa, confirmando que o arcabouço conceitual que ela tão bem explica no começo de sua obra está realmente profundamente embutido na obra de JRR Tolkien.


Cristina traz a lume a discussão algumas ideias basilares para a construção da amizade em O Senhor dos Anéis (e, porque não, dentro da obra toda de John Tolkien). Pontua-se aquilo que parece mais relevante:

  • primeiro, a importância do entendimento de que amizade, sob o prisma Aristotélico, implica (ou é) virtude e, como tal, é estrutura fundante do conceito de felicidade, o que Cristina, de forma magnífica, relaciona com o neologismo de JRR Tolkien, a eucatástrofe, que pode ser compreendida com a leitura (nada fácil e simples) do ensaio Sobre Contos de Fadas;

  • segundo, com fundamento no escrutínio do Teólogo, que a amizade cristã contém o elemento “reciprocidade”, tornando os amigos mais próximos a Deus, pois comungam com Ele quando são amigos (a amizade perfeita somente Deus brindaria; nós, enquanto criaturas, teríamos a potencialidade de chegar perto disso, mas não de forma perfeita); e

  • terceiro: a amizade mais próxima da perfeição exige caridade e ela esta fundada na misericórdia, tal como Gandalf menciona a Frodo quando analisa a misericórdia de Bilbo para com Gollum. É aqui que a Demanda do Anel finalizará dentro de um caráter eucatastrófico: com a misericórdia de Bilbo e a demonstração cabal de que agir pelo caminho virtuoso é sempre preferível ao mau agir ou mau fazer.

Com uma habilidade de organização do pensamento e certa de onde quer chegar, Cristina desenvolve a amizade na obra analisando a aplicação dos conceitos na construção da narrativa e em como os personagens são influenciados por ela (ou pela falta dela). Não apenas Frodo e Sam são abordados, mas Gollum, Boromir e seu irmão Faramir, Gandalf e a relação entre Legolas e Gimli.


Sobre a relação destes dois últimos, causou certa estranheza inicial o fato de a autora não ter desenvolvido os dizeres dos Portões de Dúrin na entrada oculta de Khazad-dûm: a ligação entre elfos e anões parece ter sido possível e chancelada pela palavra “mellon”, "amigo" em Sindarin (uma das formas de élfico de Tolkien). Compreende-se que o tenha feito, pois adentrar neste tema expandiria a análise para o Silmarillion (ao qual Cristina recorre ao longo da obra para fazer alguns ganchos importantes que preenchem lacunas importantes de O Senhor dos Anéis), fugindo assim do recorte proposto pelo trabalho.


Outrossim, também chama a atenção o fato de a autora não se limitar à análise da amizade nos livros, mas singrou os mares das adaptações cinematográficas, fazendo-o de forma extremamente competente e didática, com direito a reprodução de frames de cenas-chave, como o “diálogo” entre Sméagol e Gollum. Ponto para a diagramação do livro, que quando ingressa no tema cinematográfico, acrescente uma margem cinza ao texto, diferenciando o texto.


A autora, inclusive, se socorre diversas vezes de comentários da produção para analisar a adaptação cinematográfica da obra, bem como de outros materiais que aparecem na versão estendida, tal como o famigerado combate de Aragorn e Sauron frente ao Portão Negro, mas que felizmente foi substituído e Peter Jackson optou por substituir Sauron digitalmente por um trol.


Neste ponto, contudo, a autora deixa de lado algumas cenas importantes da versão estendida em seus comentários, que seriam de grande importância para o público da versão vista nos cinemas e que foram abandonadas no corte pela direção dos filmes; no contexto do estudo da amizade, poderiam demonstrar como esta, no “corte do diretor”, também caminha de modo semelhante ao dos livros, ressalvadas as devidas adaptações. O exemplo que mais salta aos olhos é a cena de Frodo e Sam vestidos com armaduras órquicas e, precisando passar pela Terra Negra, vêem-se obrigados a caminhar em meio a uma tropa de orques e quase são descobertos, momento em que abandonam a estrada e, em seguida, o disfarce. Outra cena que poderia ter sido objeto de crítica é a de Aragorn decepando o emissário e porta-voz de Barad-dûr, a Boca de Sauron, e as implicações no caráter nobre da personagem .


Reitera-se: a não menção a tais cenas em nada tira o brilho de Cristina ao fazer a análise comparativa da amizade nos livros e nos filmes.


Tolkien nos deu uma história e um universo repleto de detalhes, profundidade e coerência, ainda que incompleto e em eterno processo de revisão. Mas o maior tesouro que temos nessa obra são os valores e virtudes, de emoção, de seres humanos. Sua obra é uma celebração ao Amor, mas não do amor fugaz (paixão e/ou Eros), mas da Virtude do Amor, da Amizade Verdadeira, aquela que os celtas chamariam, em gaélico antigo, de “anam cara” (anam sendo alma e cara amigo), ou seja, amigo espiritual, aquela amizade que te permite ser um e completo, verdadeiro, reconhecendo no amigo todas as possibilidades e, inclusive, suas não-virtudes; aquele pórtico em que o divino e humano se conectam, onde se realiza o impossível, inclusive destruir o Um Anel.


E é com o brilho desta obra que se encerra esta breve resenha: a obra que Cristina nos brindou reluz como a fronte de Eärendil. Emociona e dá esperança saber que a Academia brasileira é capaz de produzir material de qualidade, relevante e útil, com aplicação na vida das pessoas, sem ser mais do mesmo. A academia precisa ser incentivada.


P.S.: Comentei com a Cristina que me chamou a atenção a ausência de Tom Shippey na Bibliografia e ela me disse que também não tem Scull & Hammond, mas que estão sendo estudados para o Doutorado. Logo, QUE VENHA O DOUTORADO! /|\


Bônus:

Vídeos com Cristina Casagrande falando sobre seu trabalho e sobre amizade.



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