Salve! Hoje é dia de falar sobre a obra A Roda do Tempo, do Robert Jordan. E desta vez...
Quero contar pra vocês sobre um prólogo de O Olho do Mundo que não existe traduzido para o português, nem pela Editora Intrínseca nem pela (finada) Editora Caladwin, que traduziu os dois primeiros volumes antes da Intrínseca".
"- Péra, como assim? Um capítulo inteiro que não existe no livro?!?!"
É isso mesmo! Mas calma que vou te contar a história desse prólogo e porque ele não existe na edição brasileira.
Voltemos para 1990...
Após editora estadunidense TOR BOOKS publicar a primeira edição de “O Olho do Mundo” (janeiro de 1990) e “A Grande Caçada” (novembro de 1990), quase onze anos depois (em janeiro de 2002) a Tor republicou estes dois livros pelo seu selo Starscape. Seu objeto era introduzir a série a leitores mais jovens. O famoso nicho “Young Adults” ou “Jovens Adultos”.
Para isso, dividiu o volume inicial da série em dois volumes: “From the Two Rivers” (Desde os Dois Rios, em tradução livre), que vai a té o capítulo 23 de O Olho do Mundo, e “To the Blight” (Para a Praga, em tradução livre), do capítulo 24 ao 53 de O Olho do Mundo.
É interessante notar que “To the Blight” possui um glossário ligeiramente ampliado, com algumas novas entradas que não constam da edição normal da Tor (não consegui descobrir quais são, pois não tenho o livro). Por outro lado, From the Two Rivers possui um novo prólogo, situado entre o prólogo Monte do Dragão e o Capítulo 1 deste livro.
Já a Grande Caçada, também dividida em dois volumes ("The Hunt Begins" – A caçada começa, e "New Threads in the Pattern" – Novas Tramas no Padrão) não possui qualquer nova informação ou texto inédito, mas possui algumas pequenas revisões que não entraram na versão “normal” da Tor – contudo não consegui apurar se tais revisões foram incorporadas em novas edições de A Grande Caçada – muito menos na edição da Intrínseca.
É justamente sobre este novo prólogo, escrito por Robert Jordan e publicado exclusivamente para From the Two Rivers, que quero conversar. Ao preparar esta edição, Robert Jordan pensou que seria bacana inserir um prólogo... Infelizmente penso que esse texto nunca terá uma tradução oficial pela atual detentora dos direitos de publicação da obra no Brasil.
Também é legal destacar que a editora Dynamite, que está adaptando (em inglês) a série para os Quadrinhos (começaram pelo New Spring – Nova Primavera), salvo melhor juízo, desde abril de 2009, incluiu referido prólogo em sua adaptação. Na descrição vou deixar um link onde (aqui) você consegue ver um preview do volume um da HQ e ler o prólogo inteiro adaptado – mas infelizmente o quadrinho está apenas em inglês.
Sobre o prólogo em si. A abertura dele se dá com o ícone dos dois corvos. Há algumas cenas importantes neste prólogo. Quero comentar algumas coisas em geral, mas vou dar atenção para aquilo que julgo mais importante.
O prólogo se passa no ano de 991 da Nova Era, sendo um capítulo narrado sob o ponto de vista de uma Egwene de nove anos de idade. Então espere uma visão mais infantil das coisas, já que se trata, justamente, da história vista pelos olhos de uma criança. E isso, acredito, foi intencional, já que este volume trata de apresentar a obra aos jovens leitores (YA). Me parece bem claro, ao longo do texto, uma espécie de diálogo do autor (por meio de Egwene) diretamente com o público-alvo desta nova edição. Achei interessante a adição – e ela traz, em si, várias adições interessantes, especialmente para aqueles que não tem ideia do que se tratam os livros.
O leitor é levado a Dois Rios. É tempo de tosquia de ovelhas. Então todos estão trabalhando, seja diretamente com as ovelhas ou as lãs, ou com tarefas complementares. É o caso de Egwene: ela está servindo água e quer ser a melhor nisso. Tão Egwene!
A cena começa com ela pegando água no rio, com um ar de seriedade, como se a tarefa de servir água fosse a mais importante do mundo.
A primeira cena interessante que me chamou a atenção quando li este prólogo pela primeira vez:
“Um grande corvo voou através do rio para se empoleirar alto nos galhos de madeira branca próximo de onde os homens estavam lavando ovelhas. Quase que imediatamente um topete-vermelho começou a mergulhar em direção ao corvo, um clarão escarlate que gorjeava ruidosamente.
O topete-vermelho deveria ter seu ninho por perto. Ao invés de levantar voo e talvez atacar a ave menor, contudo, o corvo apenas se arrastou para o lado do galho, para onde alguns galhos menores o protegiam um pouco. Ele examinou abaixo os homens que trabalhavam.
Corvos as vezes incomodavam as ovelhas, mas ignorar as tentativas do tope-vermelho de assustá-lo para longe era algo ainda mais incomum. Mais do que isso, ela tinha a estranha sensação de que o pássaro negro estava observando os homens, não as ovelhas. O que era bobo, exceto... Ela já ouvira pessoas dizendo que corvos e gralhas são os olhos d’O Tenebroso. Esse pensamento fez com que arrepios irrompessem por seus braços e mesmo em suas costas. Era uma ideia boba. O que O Tenebroso iria querer ver nos Dois Rios? Nada nunca acontecia em Dois Rios.”
Acho interessante a questão do corvo e do topete vermelho. Me faz lembrar de uma cena muito importante no final de A Grande Caçada. O que vocês opinam?
Mas mais que isso, é interessante que a ave vermelha tenta proteger seu ninho do corvo... E isso é muito significativo, pois se o que a Egwene pensa é certo, corvos e gralhas seriam os olhos do Tenebroso. Há um foreshadowing, uma antecipação aqui bem interessante. O simbolismo é bem alto. O que estaria o corvo observando? Alguém se lembra do que acontece durante o Bel Tine no Campo de Emond? Entendo que estes corvos estão realmente explorando o terreno para poder marcar e entregar posições de possíveis alvos para os Trollocs que virão pelos Caminhos mais pra frente no livro. E o personagem de cabelos vermelhos claramente busca defender seu ninho, sua família, seus entes queridos.
A cena segue com uma descrição das pessoas que ali trabalham, homens, mulheres e crianças e algumas interações de Egwene com algumas outras crianças e adolescentes. A personalidade de Egwene já está bem caracterizada aqui, com apenas 9 anos: teimosa como alguém de Dois Rios, determinada, com esse ar de superioridade e certa arrogância. 😊 Ela encontra Perrin e seus pais e o Mestre Luhhan estão tratando do futuro de Perrin: para que ele vire ajudante e aprendiz do mestre ferreiro.
E agora acontece algo interessante:
“O movimento nos galhos de um grande carvalho d'água além de Cilia chamou sua atenção, e ela tomou um susto. O corvo estava lá em cima e ainda parecia estar observando. E havia um corvo naquele pinheiro alto também, e um naquele outro ao lado, e naquela nogueira, e... Nove ou dez corvos que ela podia ver, e todos pareciam estar observando. Tinha que ser sua imaginação.”
Nove ou dez corvos... Eu não encontrei uma ligação direta que poderia haver, mas pensei que poderia simbolizar que quase a totalidade dos 13 Abandonados ou algum dos 12 principais Bandos de Trollocs.
O capítulo se desenvolve, então, pela observação infantil de Egwene da realidade e suas relações com outras crianças e adultos. Inclusive há conversas com assuntos sobre garotos e um possível casamento entre ela e Rand – tudo o que ela não quer é ter que se submeter a um relacionamento sem interesse ou que possa impedi-la de alcançar os seus objetivos e sonhos.
Fica claro que a relação de Egwene com suas irmãs é intensa e difícil e ela evita ao máximo estar com elas. É que toda a tratam como um bebê, e esse é um dos motivadores de Egwene querer ser sempre a melhor nas tarefas que desempenha.
E aqui temos um vislumbre da Sabedoria antes de Nynaeve: afinal, aqui ela ainda era uma aprendiz. E a relação entre Nynaeve e a antiga Sabedoria, a Sra. Barran, parece ser difícil. Por alguma razão ela parece decepcionada quando Nynaeve faz um curativo em alguém que se cortou. Talvez pelo fato de que algumas das curas de Nynaeve, em algum momento, se mostram ineficazes?
E já vemos o famoso tique de Nynaeve com sua trança sempre que ela fica nervosa ou irritada. E mais corvos aparecem.
“Um alvoroço de movimentos no ar atraiu o olhar de Egwene, que encarou. Mais corvos pontilhavam as árvores ao redor do prado agora. Dúzias e dúzias deles, e todos observando. Ela sabia que eles estavam. Nenhum tentou roubar qualquer coisa das mesas de comida. Isso simplesmente não era natural.
Pensando bem, as aves não estavam olhando para as mesas de cavalete. Ou para as mesas onde as mulheres trabalhavam com a lã. Elas observavam os meninos pastoreando as ovelhas. E os homens tosquiando ovelhas e carregando lã. E, também, os meninos carregando água. Não as meninas, nem as mulheres, apenas os homens e os meninos. Ela teria apostado nisso, mesmo que sua mãe dissesse que ela não deveria apostar. Ela abriu a boca para perguntar à Sabedoria o que isso significava.”
Interessante notar também que aqui já temos uma descrição interessante: “Nynaeve estava fazendo aquilo desde o último outono, sabendo que Egwene estava lá sem precisar olhar, e Egwene desejava que ela parasse”. Isso porque ela curou a febre quebranto de Egwene e formaram essa espécie de elo após isso.
Após seguir em sua jornada distribuindo água, ela vaia trás de Mat e Perrin, para ver se eles estavam aprontando. Ela encontra os meninos, junto com Rand, descansando e tramando alguma coisa que ela não conseguiu descobrir o que era. E de repente os meninos são chamados pelo prefeito, que lhes diz que é hora de eles ouvirem uma história que ele havia prometido. Começam a falar os temas que querem ouvir: Aes Sedais, Guardiões, Trollocs e Falsos Dragões.
O pai da Egwene pergunta se Tam al’Thor se arrisca a contar a história e este sugere que deveriam contar uma história sobre o Dragão, Lews Therin.
“Vocês já ouviram sobre a Era das Lendas? Ocorreu três mil anos atrás e mais – o pai de Rand continuou. – Havia grandes cidades cheias de prédios, mais altas do que a Torre Branca e isso é mais alto do que qualquer coisa, exceto uma montanha. Máquinas que usavam o Poder Uno transportavam pessoas pelo chão mais rápido do que um cavalo pode correr, e alguns dizem que máquinas carregavam pessoas pelo ar também. Não havia doenças em lugar algum. Nem fome. Sem guerra. E então o Tenebroso tocou o Mundo. A Era das Lendas sequer tinha a memória da guerra, é o que dizem, mas uma vez que o Tenebroso tocou o mundo, eles aprenderam rápido o suficiente. Esta não era uma guerra como aquela que você escuta sobre quando os mercadores vêm em busca de lã e tabaco, entre duas nações. Esta guerra cobriu todo o mundo. A Guerra da Sombra, passou a ser chamada. Aqueles que defendiam a Luz enfrentaram outros tantos que defendiam a Sombra e, mais do que Amigos-das-Treva além da conta, havia exércitos de Myrddraal e Trollocs maiores do que qualquer coisa que a Praga expeliu durante as Guerras Trollocs. Aes Sedais também passaram para a Sombra. Eles eram chamados de Abandonados.”
E, aqui, Robert Jordan faz um resumo maravilhoso da guerra das Sombras e do Ataque a Shayol Ghul. VALE MUITO A PENA LER.
Aí você vai me perguntar: mas como vou ler? Não sei ler em inglês! Então olha... fiz uma tradução sem fins lucrativos, para ajudar as pessoas a lerem esse prólogo, pois como disse, acho que não vamos conseguir ver tão cedo esse texto em português pela editora. Você encontra o texto traduzido aqui embaixo;
Se você encontrar algum problema na traudução, me avisa! Espero que apreciem a leitura...
Enfim... o prólogo termina com os meninos sendo mandados de volta a trabalhar e a Egwene voltando a entregar água. E então ela se dá conta de que há um número imenso de corvos que, ao final, se afastam voando para o oeste, exceto um, que fica lá encarando ela, antes de ir embora.
A vida, sob o ponto de vista de uma criança, não é muito complexa, além dos afazeres que lhe são colocados e aquelas pequenas metas de convivência e reconhecimento social. Não espere grandes elocubrações filosóficas como no prólogo Monte do Dragão, mas espere BASTANTE material de construção sobre o passado do mundo onde se passa a série. Além de interessantes noções sobre a vida em Dois Rios e no Campo de Emond e na dinâmica entre os personagens retratados. Uma adição muito bem vinda ao livro.
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