Quem acompanha a página do Círculo Nazgûl (da qual participo) bem como outros grupos sobre a obra de John Ronald Reuel Tolkien sabe que a editora HarperCollins Brasil tem em seus planos traduzir a série de livros “The History of Middle-earth”, A História da Térra-média.
Em que pese se tratar de monumental obra, a qual nos apresenta aspectos evolutivos da narrativa e conceitos importantes por trás de tudo que lemos nas obras, inclusive trechos abandonados e também revisados (mas inconclusos), há coisas interessantes de abordar, ainda que não possam ser consideradas completamente como "cânone".
Ocasionalmente, navegarei por essa obra também e, nesta ocasião, focarei em um aspecto do “The Book of the Lost Tales part 1” (O Livro dos Contos Perdidos parte 1”): uma imagem cujo título é “I Vene Kemen”.
Trata-se de um rascunho bastante inicial desenhado pelo próprio professor J. R. R. Tolkien, na qual há uma espécie de um mapa do mundo então concebido, o qual tinha o formato de um grandioso navio. Pode-se dizer que esta imagem é primeira versão ilustrada do mundo criado por Tolkien para aquilo que hoje conhecemos como “legendário”, o qual é retratado nos textos intitulados como “Lost Tales” ou “Contos Perdidos”.
O desenho contempla uma série de conceitos e lugares, conforme consigo ler, a saber (lembrando que tratam-se de conceitos iniciais de elementos que hoje conhecemos, em forma mais desenvolvida/acabada, por meio da obra publicada):
Nūme: Oeste. Provavelmente referindo-se à Extremo Oeste (hoje conhecemos como Aman);
Valnir: um conceito inicial do que hoje conhecemos como Valinor;
Taniquetil;
Harmalin: mais tarde passou a ser Arvalin. Esta é a região em que Ungoliant vivia antes do Escurecimento de Valinor. No Silmarillion publicado, Ungoliant vivia em Avathar(1), antes de ir para a Terra-média com Melkor;
As Árvores;
Toros valinoriva: parece se referir às Montanhas de Valinor, as Pelóri;
Tolli Kimpelear: parece se referir às Ilhas Encantadas (Twilit Isles), um arquipélago ao lado do grande mar, criadas após a fuga dos Noldor para proteger Tol Eressëa e Valinor, em função do Ocaso de Valinor (Ver abaixo I Tolli Kuruvar);
Tol Eressëa;
I Tolli Kuruvar: as Ilhas Encantadas (2), criadas após o Ocaso de Valinor (o nome Qenya (3) de Tolli Kimpelear);
Haloisi Velike: o Grande Mar;
Ô: o Mar;
I Nori Landar: aparentemente se refere às Grandes Terras. Um conceito que provavelmente evoluiu e, com o desenvolvimento das narrativas, passou a ser a Terra-média (ou foi substituída pelo conceita da Terra-média);
Koivienéni: mais tarde, Cuiviénen;
Palisor: na versão inicial do legendário, Tolkien nomeou como Palisor a região média das Grandes Terras. É nela onde está o Koivienéni, as Águas do Despertar;
Sil: a Lua;
Ûr: o Sol;
Luvier: Nuvens;
Oronto: Leste;
Vaitya, Ilwë, Vilna: camadas do ar (4);
Ulmonan: os majestosos salões de Ulmo nesta versão inicial do legendarium. Segundo Christopher Tolkien, seu pai nunca explicou o significado de –nan. Estão localizados dentro do Oceano Circundante;
Uin: uma grande baleia que esta a serviço de Ulmo. Ela que carregou Tol Eressëa para perto de Valinor nesta versão do legendarium. É tida como a primeira baleia e também puxava a carruagem de Ulmo (5); e
Vai ou Neni Erùmear: o Oceano Circundante (6).
Neste primeiro volume da série, Christopher Tolkien nos dá a informação de que “I Vene Kemen” está em Qenya e que tal nome talvez signifique “A Forma da Terra” ou “O Navio da Terra”.
O elemento “vene” pode estar relacionado com a raíz “vene”, “forma” e seu derivado “venë” (“pequeno bote”). Para o elemento “kemen”, o Léxico Qenya contem as palavras “kemi” (“terra, solo”) e “kemen” (“solo”), derivados da raiz “keme”.
A análise da imagem é interessante para nos mostrar como elementos que hoje nos são tão caros e que fazem parte indissociável do que hoje conhecemos como "legendário de Tolkien" surgiram e foram evoluindo ao londo do processo criativo do autor. Alguns permaneceram inalterados, outros evoluíram e alguns tantos, inclusive, foram suprimidos e nunca mais mencionados em posteriores revisões. Nos possibilita, portanto, entrar um pouco na mente e no processo criativo do autor, nos dando uma dimensão histórica do desenvolvimento do mundo que era criado pelo autor.
Notas: 1 Avathar é uma faixa estreita de terra ao pé da parte sul das Pelóri, em Aman. 2 Curiosa é a menção que vemos em Roverandom às Ilhas Encantadas, através das quais era possível ver o Reino Élfico. 3 Qenya é o nome que Tolkien dá originalmente ao idioma dos Altos Elfos que, mais tarde, evoluiria para aquilo que passamos a conhecer como “Quenya”, em O Senhor dos Anéis. 4 Nesta ilustração, Vaitya (palavra Qenya) é a mais alta das camadas de ar, a qual esta envolta ao redor do mundo e fora dele. É uma camada escura e de fluir vagaroso. Nesta versão primitiva do Livro dos Contos Perdidos, as formas Qenya primitivas Vai e Vatia são derivadas da raíz vaya- (“encobrir/enrolar”). Ilwë é a camada intermediária, que flui por entre as estrelas. Sua raíz Qenya ilu- dá a ideia de “éter, os finos ares por entre as estrelas”, de onde deriva o nome de Illuvatar; em Qenya, Ilwë é “céu, a camada azul intermediária que fui por entre as estrelas”. Vilna, a camada de ar mais próxima do mundo, o próprio ar que se respira. Em Qenya, da raíz vili- deriva o nome Vilna (mais tarde mudado para Vilya), que significa “ar (mais baixo”). 5 Mais uma ligação com Uin, a baleia de Roverandom. 6 As versões do HoME um se referem a Vai como o Oceano Circundante, com águas tão rasas que eram impossíveis de serem navegadas, exceto pelos peixes e pelo carro de Ulmo.
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