Resenhar uma obra como A Queda de Gondolin não é das tarefas mais fáceis, ainda mais quando vemos que nomes respeitáveis no meio tolkiendili já o fizeram, como o próprio John Garth, autor de Tolkien and the Great War [1].
Contudo, a resenha que pretendo aqui fazer, ainda que de forma singela, também se defronta com um tema inédito em nosso país: por vez primeira um livro de J.R.R. Tolkien é publicado, simultaneamente, no Brasil e no Reino Unido (além dos E.U.A. e Alemanha). Só isso já é digno de nota e de exultação para nós, brasileiros[2].
Mais ainda, a obra, que não é das mais simples de ser lida, sobretudo para quem não conhece minimamente a obra de Tolkien, facilita o acesso aos países lusófonos (não apenas ao Brasil) desta tão importante narrativa, permitindo que mais estudos possam ser produzidos com este material inédito em nosso vernáculo.
O momento é propício: já temos duas grandes obras biográficas com traduções novas no Brasil, O Dom da Amizade e a Biografia de J.R.R. Tolkien, ambos pela Harper Collins Brasil (o segundo, a muito esgotado nas prateleiras de nossas livrarias, finalmente pode ser lido, com uma tradução revista e atualizada), que permitem uma grande análise sobre a vida e obra do autor, inclusive a influência que C.S. Lewis teve sobre o Professor de Oxford (e vice-versa).
Além disso, recentemente houve um magnífico e inédito curso organizado na Universidade de São Paulo (USP) por Cristina Casagrande e Diego Klautau, analisando pormenores e detalhes da obra de Tolkien, com participações dos maiores expoentes e estudiosos na obra do Professor.
Em um cenário macro, ainda, temos obras excepcionais e revigorantes, como “Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo”, de Enéas Tavares e Bruno Anselmi Matangrano, que analisam a fantasia no Brasil e sugerem o fantasismo como novo movimento literário[3].
Como sabemos, a academia brasileiro pouco tem levado a sério a literatura fantástica, salvo poucas exceções, como o caso do Professor Cido Rossi, exceções estas que tem cada vez mais desbravado e demarcado o terreno que a fantasia merece. No exterior, por outro lado, Tolkien viu essa mesma discussão ainda em vida, mas hoje isso é um debate superado e Tolkien, um dos grandes nomes da literatura hodierna, é profusamente estudado e utilizado nas escolas e universidades, seja por sua relevância como filólogo, crença religiosa e pela qualidade e importância de sua literatura como crítica a tudo o que o Autor percebia como aspectos nefastos da modernidade.
Dito isto, convém destacar que a origem de A Queda de Gondolin remonta ao final do ano de 1916, começo de 1917, conforme o próprio Christopher Tolkien afirma no início da obra (p. 23). Como o editor da obra aponta, seu pai produziu alguns relatos divergentes sobre a origem da narrativa.
Colin Duriez, em “O Dom da Amizade”, destaca que “a maior parte de O Livro dos contos perdidos e seu “léxico gnômico” foram escritos na convalescença em 1916-1917” (p.35). O Livro dos Contos Perdidos foi publicado em dois volumes, o primeiro e o segundo, da série A História da Terra Média (The History of Middle-earth), sendo que seu volume II contém o primeiro e mais antigo relato de A Queda de Gondolin.
Humphrey Carpenter afirma em sua Biografia (p.131 da nova edição): “A primeira história a ser colocada no papel – foi escrita no começo de 1917, durante a convalescença de Tolkien em Great Haywood – ocupa, na verdade um lugar próximo ao fim do ciclo”. Ora, narrativa mais antiga, a primeira história vertida ao papel por J.R.R. Tolkien é, justamente, A Queda de Gondolin.
Ou seja, temos em mãos uma narrativa cuja gestação foi de aproximadamente 102 anos! E que, agora, finalmente está vendo a luz e sendo publicada como obra literária! E que honra poder ter esta obra em português ao mesmo tempo que o resto do mundo.
“A Queda de Gondolin” encerra o ciclo dos três grandes contos do mundo antigo da obra de Tolkien, ao lado dos já publicados “Os Filhos de Húrin” (com tradução da Martins Fontes para o Português) e, ainda inédito no Brasil, “Beren e Lúthien” (com lançamento previsto para novembro deste ano em nosso país). O leitor incauto e que não teve acesso à referida obra por último mencionada poderá ter alguma dificuldade com A Queda de Gondolin, já que algumas referências são feitas a ela durante as intervenções de Christopher Tolkien no texto.
Destaco: as menções a “Beren e Luthien” são importantes para ambientar alguns temas para o leitor que tampouco teve acesso à História da Terra-média (que a editora Harper Collins Brasil já prometeu verter para a última flor do Lácio), como a noção de que os elfos GNOMOS são os elfos que depois passaram a ser chamados de NOLDOR (Tolkien remete ao grego gnomé ao usar “gnomos”, com o significado de “pensamento, conhecimento, opinião”).
Ainda que este livro não contenha uma narrativa final do conto d’A Queda de Gondolin, diferente do que ocorre em Os Filhos de Húrin, vez que nunca finalizado pelo Autor, nele é possível verificar toda a evolução do conto, inclusive da evolução da perícia de Tolkien como artífice das palavras.[4]
A guisa de exemplo: o Conto Original, que é a composição de 1916-1917 e que abre o livro, possui uma composição bastante erudita mas com uma narrativa menos fluída; é, contudo, a única versão completa da história (e, como é possível verificar, muito próxima, ainda que com substanciais alterações e evoluções nos detalhes, da versão que conhecemos em O Silmarillion), com detalhes impactantes, como a descrição das doze casas de Gondolin, descrição esta que nos remete à Ilíada[5]. Já a Versão Final do conto, apresentada por vez primeira em Os Contos Inacabados, nos mostra um autor mais maduro e fluido, preocupado em amarrar as alterações que foram incorporadas em outras partes de sua mitologia, sem, contudo, perder a natureza poética e erudita de seu estilo de escrita.
A escrita de Tolkien envelheceu tão bem como um vinho. Isso, invariavelmente, me remete a Tuor: “This uplifts the heart like the drinking of cool wine!”. Deixo a citação no original para que o leitor procure a versão traduzida de forma brilhante por Reinaldo José Lopes (falaremos adiante da tradução).
Vale destacar, contudo, que estes textos não são de todo inéditos: os textos organizados por Christopher Tolkien no já mencionado A História da Terra-média já abarcavam as evoluções da história de A Queda de Gondolin publicadas neste volume que agora chega às estantes nacionais, mas em volumes esparsos.
Sabendo que os textos não são inéditos, exceto pelos comentários do filho de J.R.R. Tolkien, qual a relevância desta obra?
Tolkien era da ideia de que cada um dos seus três contos fundamentais dos dias antigos pudesse ser lido de forma independente, ainda que eles compusessem um cenário maior. Ora, ter um livro publicado sem grandes interferências do editor por meio de dezenas de notas de rodapé ao longo do texto (quem leu Os Contos Inacabados sabe bem o que é isso; quem leu A História da Terra-média também), com a evolução de uma única narrativa, qual seja, a história de Tuor e da Queda de Gondolin, é sem igual, já que os textos desta mesma temática estão incluídos todos em um único volume. O texto fica coerente e ganha tratamento de obra literária autônoma, tal como dito acima. Só isso já seria suficiente.
Mas, além disso: para o pesquisador, temos os comentários elucidativos de Christopher Tolkien, bem como um Glossário de Nomes, com citações a textos ainda inéditos em português (procurem por Ungoliant e os desdobramentos dessa entrada, por exemplo).
Ao escrever a primeira história de sua mitologia, Tolkien tinha viva a lembrança da batalha de trincheiras do Somme, o episódio mais sangrento da Primeira Guerra Mundial. E isso se reflete, de alguma forma, na angústia que é despertada no leitor conforme a queda da cidade vai se completando. Ainda que estejamos em um ambiente sem a tecnologia moderna, os elementos que claramente permitem dizer que Tolkien critica a modernidade[6] e o uso da tecnologia com o intuito de dominação, um uso, portanto, não-virtuoso da tecnologia, estão presentes. Estes elementos estão claramente visíveis em O Senhor dos Anéis, a obra máxima de Tolkien, que surgiu como uma continuação para O Hobbit, mas que passou a ser encarada pelo Autor como uma continuação efetiva de O Silmarillion.
O livro, contudo, causa uma dor profunda e que se traduz neste fragmento (p. 226):
“Mas o Conto Perdido de Eärendel nunca foi escrito”
Talvez Tolkien tivesse tido mais estímulo para seguir trabalhando em sua grandiosa obra, a obra de sua vida, se seu vinculo de amizade com C.S. Lewis tivesse se mantido forte como foi durante boa parte da vida deles.
Lewis era um (se não o maior, ao menos fora do círculo familiar de Tolkien) de se seus instigadores e apoiadores durante a escrita de O Senhor dos Anéis (até que as leituras foram barradas no grupo dos Inklings por Hugo Dyso, que não aguentava mais histórias de elfos...), assim como também adorava ouvir os trechos das histórias do Mundo Antigo desenvolvidas por Tolkien.
Diz Colin Duriez:
“Parece que Lewis não influenciou Tolkien do mesmo modo como este o influenciou. Tolkien, isso sim, encontrou em Lewis um ouvinte disposto e um apreciador. Essa leitura e escuta foi institucionalizada nas reuniões das quintas-feiras à noite dos Inklings. Se essas reuniões das quintas-feiras tivessem continuado depois de 1949, hoje poderia existir uma narrativa completa dos contos das primeiras eras da Terra-média numa escala semelhante à de O Senhor dos Anéis. Quem sabe? É triste que Lewis não tenha perseverado em encorajar o término de “O Silmarillion”, especialmente dos grandes contos como o de Beren e Lúthien. Um motivo pode ter sido o afastamento gradual dos dois amigos na década de 1950”.
Em que pese a dor da incompletude, agora temos o ciclo fechado, depois de 102 anos: finalmente A Queda de Gondolin está publicada pelas mão de seu filho e herdeiro literário. Isso provavelmente deve alegrar o bom Mestre, o que me remete à linda dedicatória de Christopher Tolkien para este livro: “para minha família”.
Aos 93 anos de idade (quase 94), o filho se despede oficialmente da obra do pai da melhor forma possível. Um brinde a John e a Christopher Tolkien!
Considerações sobre a edição brasileira
Graficamente o livro é um deleite: capa dura, de confortável manuseio, embora as letras douradas da capa de minha edição já estejam gastas (embora, na qualidade de colecionador, tenha o máximo de cuidado no transporte e armazenamento do livro). Antes de escrever esta resenha, li o livro duas vezes, a primeira, em uma madrugada. E embora os acréscimos da edição nacional sejam lindos, confesso que a partir da página 125 os gráficos no pé das páginas passaram a me incomodar (a partir da p. 125 são duas embarcações élficas grandes), pois me tiravam a atenção do texto. Espero que não me condenem ao Vazio por essa opinião.
Sobre a tradução, arrisco dizer que Camões traduziu este texto. E acredito que essa era a intenção do tradutor, ao menos pelo que ele externou em sua página na rede social Facebook. Missão cumprida! As traduções seguem a vontade do Autor expressa no seu Guide on Names of the Lord of the Rings e muito me agradaram, por mais que ainda me cause estranheza ler “orques” ou invés de “orcs”, ou “gobelins” ou “trols”. Outrossim, acredito que são intervenções que trazem ao leitor brasileiro a real noção do que o autor tentou transmitir em seu idioma natal.
Gostaria de destacar também a grande diferença de tom da narrativa do Conto Original para a Última Versão, originalmente traduzida para o vernáculo por Ronald Kyrmse e, desta vez, revisada e adaptada para se conciliar com a nova proposta de tradução capitaneada, nesta obra, por Reinaldo José Lopes.
Pergunto-me qual será a consequência desta tradução para outras obras que recebem influências dos trabalhos de Tolkien: será que outras literaturas fantásticas receberão um tratamento assemelhado de tradução (o abrasileirado “orque” ao invés de “orc”)? E os jogos eletrônicos? RPGs e demais jogos de mesa? Acredito que esta nova tradução poderá a ser considerada, no futuro, um divisor de águas na seriedade que se dá ao tratamento da literatura fantástica no Brasil e seus desdobramentos em outras formas de sua expressão. Quiçá a equipe de tradutores não pense em nos brindar com um trabalho acadêmico sobre o processo de tradução que implementaram para traduzir, em linguagem uniforme, a obra de Tolkien?
Abaixo, cito algumas traduções e construções que me agradaram, bem como uma que me causou bastante estranheza (além apontar de um possível typo), além de palavras que ficaram perfeitamente encaixadas (em minha opinião) com a estética originalmente pretendida por Tolkien. Todos os grifos são meus.
- Construções que me agradaram profundamente:
“... e nenhum canal dos mares restou que não estivesse cercado de redemunhos perigosos ou com correntes de força avassaladora para a confusão de todos os navios”. (p. 214)
“Mas vê”! disse. “Na armadura do Fado (como os Filhos da Terra o chamam) há sempre uma fenda e nos muros da Sentença, uma brecha, até a plenitude, que chamais de Fim”. (p.159)
“... triste dali por diante seria o fado das Terras de Cá.” (p. 135)
- Construção que me causou estranheza:
“Sou”, disse o Elfo. “Voronwë, filho de Aranwë, eu sou. Mas como sabes meu nome e meu destino, eu não compreendo.”
“Eu sei, pois o Senhor das Águas falaste comigo na tarde passada”, respondeu Tuor, “e disse que havia de te salvar da ira de Ossë e te enviar para cá para ser meu guia.” (p.165)
Potencial erro de digitação
“Então ergueu a voz e tangeu as cordas de sua harpa. e, mais alto que o ruído da água, o som de sua canção e os doces acordes da harpa ecoavam na pedra e se multiplicavam, saindo a soar nas colinas envoltas no manto da noite, até que toda a região deserta estivesse repleta de música sob as estrelas.” (p. 150)
Palavras que adorei ler: “sus", “vozes-de-fata”, "criaturas-fata", peixes de "miríficas formas", drago, “serpe” e “sorva” ao invés de “sorveira”.
O livro, sem dúvida, é um marco na história da edição de livros de fantasia no Brasil e é o primeiro livro de narrativa efetivamente escrito por Tolkien (ainda que com as intervenções de seu filho) que a Harper Collins Brasil lança em nosso país. Que venham os próximos, pois que o trabalho está, sem dúvidas, rumando para um bom destino!
P.S.: Assistindo à resenha do livro feita pelo Sérgio Ramos, para o canal Tolkien Talk[7], me deparei com duas dúvidas: se a ilustração do Ulmo é inspirada na versão original do Conto, porque: (i) na página 48 da edição brasileira, é dito que Ulmo não portava nem coroa nem elmo?; e (ii) é dito, da página 47 para a 48, que Ulmo subiu o rio da Terra dos Salgueiros a pé?
Ora, não deveria ele estar no rio, ao invés de um (aparente) oceano? Estou sendo chato ou podemos creditar isso à "livre interpretação do artista"? Segue o trecho:
"Eis que então Ulmo saltou sobre seu carro diante dos portais de seu palácio sob as águas paradas do Mar de Fora, e sua carruagem era puxada por narval e leão-marinho e era em forma de uma baleia, e em meio ao soar de grandes conchas ele partiu veloz de Ulmonan. Tão grande era a velocidade de seu avanço que em dias, e não em anos sem conta como poder-se-ia pensar, alcançou a foz do rio. Subi-la a sua carruagem não podia sem maltratar as águas e as beiras do rio, portanto Ulmo, amando todos os rios e esse mais do que muitos, prosseguiu a pé, trajado até a cintura em cota de malha semelhante às escamas de peixes azuis e prateados, mas seu cabelo era de prata azulada e sua barba, chegando até os pés, era do mesmo tom e ele não portava nem elmo nem coroa."
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Notas:
[1]Acessado em 26 de agosto de 2018. https://www.thetimes.co.uk/edition/saturday-review/review-the-fall-of-gondolin-by-jrr-tolkien-the-last-tale-from-middle-earth-dwl5qdjts
[2] Esta resenha começou a ser escrita no mesmo dia em que o Museu Nacional de História do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, foi envolvido pelos látegos dos balrogs do descaso e consumido pelas chamas dos dragões da ineficiência. Tal evento serviu para me incentivar, ainda mais, a trabalhar pela cultura.
[3]Acessado em 26 de agosto de 2018. https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,pesquisadores-propoem-um-novo-movimento-literario-brasileiro-o-fantasismo,70002470458
[4] O tratamento editorial de A Queda de Gondolin é muito parecido com o que foi feito em Beren e Lúthien, oferecendo a oportunidade de analisar a evolução da narrativa.
[5] Vale lembrar que Tolkien começou a vida acadêmica na Literatura Clássica, ou seja, Greco-Romana.
[6] Um importante trabalho nacional sobre o tema é o mestrado de Paulo Cristelli em História pela PUC-SP, que foi lançado comercialmente com o nome “J R R Tolkien e a Critica a Modernidade”.
[7] https://www.youtube.com/watch?v=DMkUXeP4wnM&t=965s