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  • Foto do escritorFranz Brehme

Porque a inconsistência no Cânone de Tolkien é, na verdade, uma coisa boa?


O site theonering.net, certa vez, publicou um artigo de Demosthenes e mereceu uma tradução, feita por mim, para o site Tolkien Brasil (http://tolkienbrasil.com/artigos/gerais/porque-a-inconsistencia-no-canone-de-tolkien-e-na-verdade-uma-coisa-boa/).

O texto foi originalmente publicado no dia 25 de abril de 2012, e pode ser encontrado na versão original em inglês no link seguinte: http://www.theonering.net/torwp/2013/04/25/71111-why-inconsistency-in-tolkiens-canon-is-actually-a-good-thing/

Desta feita, o texto tem um anexo, de minha autoria, com algumas considerações adicionais.

Porque a inconsistência no Cânone de Tolkien é, na verdade, uma coisa boa?

de Domosthenes

Traduzido por Franz Eduardo Brehme Arredondo


Arte digital de Rodrigo Catini Flaibam e Jian Guo.

A jornada pelo cânone da Terra Média. Sob alguns aspectos parece um pouco com a empreitada de Sísifo. Você conhece a história do mitológico rei grego Sísifo, certo?

Para aqueles que não se lembram, Sísifo era muito astuto para seu próprio bem. Deste modo, os Deuses gregos, nada tolerantes quando os fazem parecer tolos, lhe designaram a mais frustrante das punições: Sísifo foi forçado a rolar um imenso pedregulho colina a cima. Antes que ele pudesse chegar ao topo, o pedregulho rolaria encosta abaixo, forçando-o a recomeçar novamente.

Consistência e cânone em Tolkien sempre dão essa sensação – algo que paira fora de alcance.

Mais ainda: quanto mais você tenta alcançar, mais esse algo se afasta de você. A resposta que você busca não esta inteiramente em O Senhor dos Anéis, então você começa a examinar o que Tolkien escreveu na versão publicada de O Silmarillion. Mas isso ainda é muito vago, então você começa a investigar os Contos Inacabados ou o History of Middle-earth. Você pode encontrar alguns indícios, mas eles são, quando muito, apenas fragmentos ou, pior, as histórias oferecem informações contraditórias!

Claro que, na condição de seres humanos, nós nos sentimos compelidos a procurar pela consistência e colocar as coisas dentro de uma estrutura coerente – uma estrutura que nem sempre existe.

Este é o motivo pelo qual as pessoas se contorcem em verdadeiros nós de lógica para tentar fazer com que as evidências conflitantes que mostram que os balrogs possuem ou não asas façam algum sentido.

Ou se Galadriel deixou Valinor com os rebeldes de Fëanor, ou – como Tolkien veio mais tarde a preferir, mas nunca integrou aos textos do Quenta Silmarillion – partiu de maneira independente, mas na mesma época.

Ou... bem, eu poderia continuar com outros exemplos, mas estou certo que você pegou a ideia.

O cânone de Tolkien tem um limite natural…


O fato é que não importa o quão arduamente você trabalhe nesse tema, não importa quantos recursos você consulte, há um limite no quão consistente o cânone pode ser. Para algumas coisas em Arda simplesmente não há uma única e definitiva resposta.

Meu palpite é que esta inconsistência inevitável não só não é uma coisa necessariamente ruim, como é, em verdade, algo bom. Isto pode parecer “não-intuitivo”, mas eu acredito que a incerteza sobre a “verdade factual” trabalha para aumentar nosso investimento e credibilidade na história.

Por quê? A inconsistência nos leva a fazer perguntas e discutir o que “realmente” aconteceu. Fazemos perguntas e discutimos não na esperança de uma resposta definitiva, mas como uma forma de discutir hipóteses alternativas.

Vale a pena considerar que a história ou, mais precisamente, que nosso conhecimento sobre a história é confuso e fragmentado. E quando mais fundo se tenta investigar a história, mais fragmentário e conflituoso esse conhecimento tende a ser.

Isso se explica por si só. As tradições orais falham; registros se perdem, são perdidos.

A natureza fragmentária, incompleta e contraditória do legendário[1] de Tolkien espelha isso – e esta é uma das chaves para sua profunda verossimilitude.

Ela ajuda a tornar a história mais crível, não menos.

Apenas pense em quantos dos antigos registros dos Edain não devem ter se perdido durante o Akallabêth, quando Númenor afundou entre as ondas. Considere quantos mais não devem ter se perdido no saque de Ost-in-Edhil por Sauron, na destruição de Osgiliath durante a terrível peleja entre parentes em Gondor, e nas décadas que levaram à dissolução do Reino de Arnor, então sob a dupla influência de conflitos internos e agressões externas de Angmar. Eu fantasio que mais, muito mais se perdeu além das Palantiri.

Some-se a isso o fato de que os elfos da Primeira Era eram, frequentemente, péssimos arquivistas de registros:

“Pelos Naugrim as Cirth foram levadas ao leste, sob as montanhas, e passadas ao conhecimento de muitas pessoas; mas elas eram pouco usadas pelos Sindar para a manutenção de registros, até os dias da Guerra, e muito do que era mantido na memória pereceu nas ruínas de Doriath” O Silmarillion, Dos Sindar.[2]

E não é difícil concluir que este é um dos temas da Primeira Era. Cada contratempo advindo aos Noldor não é apenas um golpe contra o fio de esperança deles em sobrepujar Morgoth, em verdade é mais uma diminuição infringida à memória coletiva deles – parte da destruição gradativa da cultura, conhecimento e história.

Muitos elfos – tanto Sindar como Noldor – foram “torrados”[3] naquela longa e vã guerra para reivindicar as Silmarils de Morgoth. Em verdade, é mais fácil listar aqueles que sobreviveram do que aqueles que pereceram antes de os Valar finalmente chegarem e arrancá-los das chamas.

(Para registro: dos envolvidos nessa longa e amarga guerra, minha curta lista de sobreviventes conta com Círdan, Elrond, Gil-Galad, Celeborn e Galadriel: os dois do meio tem apenas um pequeno papel nos eventos tardios, enquanto que o último par dessa lista deixou Beleriand ou antes ou na lamuriosa ruína de Doriath)

Ademais, alguns dos poucos Exilados remanescentes e que sobreviveram à Guerra da Ira escolheram retornar a Valinor.

A Segunda e a Terceira Era são similarmente caóticas: muito é criado mas ainda mais é destruído no conflito ou apenas perdido nas brumas do tempo. É realmente surpreendente que nosso conhecimento sobre a Terra Média seja tão contraditório e incompleto como resultado disso tudo?

Claro que há exceções. Uma é Pengolodh o Mestre da Tradição, que escapou do saque de Gondolin e então compilou as tradições orais, lendas e histórias que iriam eventualmente formar a base do Quenta Silmarillion. Este é o Quenta que mais tarde foi a base das traduções do élfico feitas por Bilbo e que chegaram até nós por meio do Livro Vermelho da Marca do Oeste.

Pengolodh também veio a sobreviver à destruição de Eregion durante a Segunda Era (cara de sorte!) antes de perceber que o já tinha visto o suficiente e decidir ir para Valinor

Incompletude gera verossimilitude


Mas retornando ao meu ponto: toda esta confusão é, na verdade, muito, muito divertida.

Apenas pense: sem esta incerteza histórica não haveria debates sobre Bombadil, nem discussões sobre as asas dos Balrogs, nem perguntas do tipo “de onde diabos vieram os Hobbits?”.

Ao invés de trocar teorias, nós apenas ficaríamos carecas de saber o que quer que seja que Tolkien tenha estabelecido como definitivo.

E, para nosso pesar, tudo seria extremamente chato. É claro que algumas destas ambiguidades são inadvertidas: ocorrem como resultado do fato de Tolkien descartar histórias parcialmente rascunhadas por razões que somente ele conhecia.

Mas leia Folha por Niggle e você começara a entender que Tolkien também almejava este tipo de efeito. Como ele comenta na carta de nº 154, em As Cartas de JRR Tolkien, é “uma elaborada forma de brincar de inventar um país – uma brincadeira sem fim, porque mesmo um comitê de especialistas em diversas áreas do conhecimento seria capaz de fazer um quadro completo”[4].

E eu imagino que esta talvez seja uma das mais astutas decisões tomadas por ele na condição de escritor.

Desta forma eu encorajo você a aproveitar a jornada pelo mundo de Tolkien. Isso porque metade do deslumbramento decorrente dela é que você realmente nunca, nem definitivamente, chegará ao seu destino.

(Demosthenes tem sido um incrivelmente nerd membro da equipe do TheOneRing.net desde 2001. As opiniões (e loucas teorias) neste artigo pertencem apenas a ele e não necessariamente representam aqueles de outro membros da equipe do TORn)

_______________________________

Notas do tradutor:

[1] https://tolkientalksite.wordpress.com/2018/05/25/afinal-o-que-e-legendarium-e-o-que-e-canone-em-tolkien/

[2] Tradução livre.

[3] O texto original usa a construção “get toasted”. Um trocadilho entre o “ser brindado” (homenageado, por tanto) e “ser tostado” (torrado, queimado com fogo). O autor, nesta parte, ainda faz um gracejo. Diz ele “para empregar o vernáculo”: “many elves — both Sindar and Noldor — get (to employ the vernacular) toasted in that long, vain war to reclaim the Silmarils from Morgoth.”

[4] Tradução livre.

Anexo

A inconsistência agradável de Tolkien é incrível e linda. Para se aprofundar em temas e variações sobre um mesmo tema, sugiro que além da leitura das obras, inclusive Contos Inacabados, Beren e Lúthien, A Queda de Gondolin (que está para ser lançado) e o History of Middle-earth, sugiro que acessem o canal do Youtube chamado Tolkien Talk. Reputo ser o maior canal, em idioma português, sobre a obra do Professor. Uma sugestão, por exemplo, são os vídeos sobre a origem dos Orcs, que analisam as várias origens que Tolkien desenvolveu para os orcs ao longo de sua vida e qual foi, ao que tudo indica, a última posição dele com relação ao tema.


Outra sugestão de leitura é a obra de Seten Erikson, O Livro Malazano dos Caídos, traduzido no Brasil pela incrível Carol Chiovato, e cujo cenário é aprofundado pelo seu co-criador Ian C. Esslemont. A série do Império Malazano é narrada como uma crônica histórica, com personagens com muitos milhares de anos e que, por vezes, confundem, esquecem, misturam, contradizem versões de eventos acontecidos milhares de anos antes da série principal. Aqui vemos uma boa execução da ideia de inconsistência proposital, especialmente se considerarmos que Erikson e Ian são arqueólogos e antropólogos, colocando seus conhecimentos científicos na obra, de diversas formas.

Em que pese Erikson não ter lido Tolkien, a técnica proposital de Erikson mostra como Tolkien é genial.


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