Introdução
Faz tempo que venho planejando escrever um texto analisando a responsabilidade jurídica do atual Presidente brasileiro, Jair M. Bolsonaro, em face da conduta estupefaciente deste no enfrentamento à pandemia decorrente do corona vírus e a doença associada, a Covid-19.
Não pretendo esgotar o tema, nem abarcar caso a caso tudo o que ele já fez falou, mas apenas dar uma noção geral para todo aquele que se interessar pelo assunto. Sei que não vou fazer nada de novo, nem muito menos tenho condições de produzir algum tipo de texto que seja eficiente na derrocada do tirano. O meu texto é dirigido aos meus amigos leigos que gostam de se informar. Este texto é para vocês, pois sei que o alcance do que escrevo está adstrito ao meu pequeno círculo de amizades (ainda que virtuais). Este é o fado da informação, já que a viralização do que escrevo só aparece quando o texto é completamente inútil.
As notícias sobre a conduta negacionista dele abundam e seria uma perda de tempo me debruçar sobre elas. A conduta está escancarada pelos meios de comunicação: ele defende remédios imprestáveis (Cloroquina e Anita, p.ex.), defende a desnecessidade de distanciamento social e do uso da máscara, favorece as aglomerações, foi contaminado por alguma variação da Covid-19 e não respeitou os protocolos médicos (nem antes nem depois de sua contaminação) e, mais recentemente, seu novo algoz é a vacina que vem sendo estudada em parceria por um laboratório chinês com o Estado de São Paulo – e em decisão proferida pela ANVISA e eivada de falta de independência, suspendeu o estudo da vacina em questão, o que foi amplamente comemorado pelo Presidente, o que deu margem inclusive a chamar a nação brasileira de uma nação de “maricas”.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341
Esta análise precisa começar pela ADI nª 6341 (doravante designada apenas como “ADI”), a qual analisou a questão da competência dos entes federativos (União, Estados e Municípios) para enfrentamento da pandemia. Competência aqui no sentido técnico-jurídico, qual seja, a atribuição legal que cada ente federativo possui para tomar medidas e implementar ações que visem garantir o direito fundamental à saúde das pessoas, cumprindo assim o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Ora, um dos principais argumentos para a inércia da União (ente federativo responsável pela esfera Federal, o Governo Federal e, portanto, o Presidente) é que haveria uma decisão do STF nesta ADI que teria “amarrado” os braços da União, transferindo integralmente a responsabilidade para combate à pandemia para os Estados e Municípios.
Essa alegação é descabida, carece de fundamentos legais e serve apenas como caldo para a disputa política que o Presidente estabeleceu com o Governador de São Paulo e outros Governadores Estaduais, numa clara conduta eleitoreira.
Ocorre que a decisão da ADI não limita as ações da União, apenas estabelece o que já está mais do que claro na Constituição da República.
E por que é tão importante que algo esteja descrito na constituição, ou seja, seja declarado (ou não) constitucional? Tudo aquilo que temos de direitos e obrigações deve ter sua origem primeva no texto constitucional; é do fundamento da regra jurídica que assim seja, para que exista segurança e previsibilidade, para que as regras do jogo não sejam alteradas no meio do jogo.
Em que pese eu, pessoalmente, não acreditar no funcionamento das instituições tal como existem hoje, essa ilusão de estabilidade é o que fundamenta toda a ideia de Estado, de democracia e do sistema de leis, ou seja, é o que fundamenta o chamado Estado Democrático e de Direito – minha crença, porém, é irrelevante, já que é o sistema que existe e que nos vincula a todos, razão pela qual esta análise é necessária. Assim, por exemplo, quando recebemos um talão de IPTU em casa, o recebemos porque existe, além das normas locais, um fundamento constitucional na cobrança de tal imposto.
A Constituição, portanto, é a base do sistema legal de um país, de modo que aquilo que não está amparado pelo texto da constituição, não é permitido (em teoria, pois cada vez mais abundam, no Poder Judiciário, decisões que fazem mandracaria jurídica e permitem interpretações cada vez mais escabrosas da legislação em vigor e da Constituição).
Dito isso, para tratar em mais detalhes da decisão tomada pelo STF nesta ADI, vou tentar estabelecer um pano de fundo sobre a questão das competências dentro do sistema federalista brasileiro, tentando não usar jargões de juridiquês, para que o texto possa ficar entendível. Mas não tenho como fugir da tecnicidade e, muito menos, de fazer citações aos textos legais. Espero que compreendam. De toda forma, estou sempre aberto a receber dúvidas e tentar esclarecê-las.
As competências no sistema federalista brasileiro
A Constituição Brasileira de 1988 começa com um dos artigos mais importantes de toda o ordenamento jurídico brasileiro, pois seu conteúdo deveria nortear todo o sistema estatal, desde o Poder Legislativo, passando pelo Executivo, até o Judiciário.
Diz o artigo primeiro da Constituição:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
A união indissolúvel é absoluta! É um princípio basilar, que sustenta o sistema federativo adotado pelo constituinte, chamado de Princípio da Indissolubilidade do Vínculo Federativo. Tanto é assim que a Constituição sequer pode ser alterada para rever isso, é o que se chama de “cláusula pétrea”, ou seja, é uma das pedras da fundação do Estado Brasileiro. O artigo 60 da Constituição, em seu parágrafo 4º, I, não poderia ser mais claro:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
Qual a relevância de saber isso? Ocorre que por força das disposições da Constituição, cada ente federativo tem seu papel definido, não sendo possível a nenhum desses entes usurpar funções de outros entes. Existem situações, como veremos, em que a definição de atribuições pode dar a impressão de que algumas competências se sobrepõem a outras, mas é apenas uma ilusão de sobreposição – há um critério jurídico para resolver essa aparente zona cinzenta.
Isso ocorre porque o constituinte escolheu criar um sistema em que, para determinadas matérias, um ente federativo tem competência exclusiva para administrar e/ou legislar sobre determinada matérias, mas em outros casos, determinou o que se chama de competência complementar ou concorrente¸ dando a cada ente federativo a atribuição de regrar determinado assunto, conforme as regras que estão na Constituição.
É neste sistema de competência concorrente, em que os entes federativos concorrem para legislar sobre uma determinada matéria, que reside o âmago da ADI nº 6341.
Há uma diferença entre competências administrativa e legislativa que cumpre esclarecer antes de prosseguir: a competência administrativa é aquela que diz qual ente pode tomar medidas concretas sobre determinado assunto, é uma competência para agir concretamente; já a competência legislativa é aquela destinada a verificar quem pode criar leis sobre determinados assuntos. Assim, p.ex., na competência administrativa, somente a União pode emitir papel moeda, mas todos os entes da federação devem proteger a fauna e a flora; na legislativa, somente a União pode legislar sobre direito civil e penal, mas União, Estados e Municípios podem legislar sobre direito tributário.
Em matéria de competências, há um outro princípio básico de formação do Estado, que é o chamado Princípio da Predominância dos Interesses. Por este princípio, materializado nas regras constitucionais, a União (ente federativo no âmbito federal) sempre terá o interesse geral, o Estados, o interesse regional e, por fim, os Municípios terão o interesse local (o Distrito Federal é um misto entre Estado e Municípios).
Este princípio parte da noção de que quanto mais próximo o ente federativo da realidade local, mais capacitado para tomar medidas específicas. Um município sabe exatamente como funciona, p.ex., o regime de cheias de seus rios e as especificidades de seu clima para proteger seu ambiente.
É desta forma que trata do assunto a Constituição:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. (BRASIL,2020).
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
(BRASIL,2020).
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. (BRASIL,2020).
Nota-se que os Estados não possuem expressamente a competência regional: essa decorre de uma interpretação do texto, já que estes podem legislar de forma residual, ou seja, aquilo que não lhes for vedado, lhes é permitido. Essa característica é interpretada como “competência regional” pelos estudiosos do Direito.
Aproveito para abrir um parêntese: todos nós, enquanto pessoas naturais, podemos fazer tudo aquilo que a lei não nos proíbe. Não há regramentos falando sobre a infinidade de coisas que podemos fazer, mas sobre aquilo que não podemos fazer. Os agentes, entidades e órgãos do Estado e, em última instância, todo aquele que possui algum tipo de função estatal-pública, somente pode fazer aquilo que a lei permite. Em que medida isso importa? Ora, tudo aquilo que não for legalmente autorizado e que, portanto, não tenha como fundamento a Constituição, não pode ser feito pela autoridade/ente/órgão público, ou seja, é vedado ao Estado agir fora das autorizações legais. Fecha-se parêntese.
Os Estados, ainda, possuem duas outras competências que lhe foram outorgadas por opção do constituinte, a delegada e a suplementar. O que isso significa?
Quando a União deixa de legislar as normas gerais (um caso de omissão legislativa na esfera federal), os Estados tem poder de legislar de maneira geral essa matéria, até que a União o faça – se e quando o fizer, a norma Estadual fica suspensa. Esta é a competência suplementar, prevista no artigo 24 da Constituição.
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário
Já a delegada decorre de ato da União que delega competência naquela matéria específica para o Estado legislar, prevista no artigo 22. A qualquer momento, a União, porém, pode editar lei que revogará o conteúdo eventualmente delegado ao Estado.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Os Municípios também possuem competência suplementar, na forma do artigo 30, inciso II, da Constituição:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Feitas estas considerações preliminares sobre o sistema federal de competências, passo a falar da decisão na ADI e as repercussões que ela tem para uma eventual responsabilização do atual Presidente da República (e, com as devidas adaptações, todos aqueles integrantes do Poder Público coniventes e comitentes de atrocidades contra a nação, como Ministro de Saúde, por exemplo.).
Do conteúdo da ADI
A ADI foi proposta pelo PDT, Partido Democrático Trabalhista, vez que o Governo Federal editou uma Medida Provisória, de número 926 de 2020 (“MP 926/20”), que altera a Lei Federal 13.979/2020, lei esta relativa ao enfrentamento da pandemia pelos entes federativos da República.
Referida MP 926/20visava limitar as atribuições dos Estados e Municípios para o enfrentamento da pandemia. A União, desta forma, concentraria as medidas principais para combate da pandemia, deixando Estados e Municípios dependentes para tomar medidas de interesse regional e local.
Por meio da MP 926/20, todas as medidas de restrição, inclusive a restrição de transporte interestadual e intermunicipal, somente poderiam tomar lugar se um ato conjunto do Ministério da Saúde e da Justiça e Segurança Pública autorizasse isso. Ainda, os gestores locais (estaduais e municipais) somente poderiam decidir sobre o tema se assim o fossem autorizados pelo Ministério da Saúde.
A MP 926/20 também determinou que nenhuma medida de restrição poderia obstruir o exercício de atividades essenciais, sendo que essas atividades seriam reguladas por um decreto do Poder Executivo Federal.
Segue o texto com as principais mudanças
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
§ 6º Ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura disporá sobre a medida prevista no inciso VI do caput. (Redação dada pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
§ 6º-A O ato conjunto a que se refere o § 6º poderá estabelecer delegação de competência para a resolução dos casos nele omissos. (Incluído pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
I – pelo Ministério da Saúde, exceto a constante do inciso VIII do caput deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
nas hipóteses dos incisos I, II, V e VI do caput deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020) (Vide ADI 6343)
III - pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.
IV – pela Anvisa, na hipótese do inciso VIII do caput deste artigo.
(...).
§ 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
§ 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
A ADI 6341 tinha por objeto a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos da MP 926/20 que alteravam a referida Lei 13.979/2020 pelos seguintes motivos: inconstitucionalidade formal por legislar sobre matéria alegadamente reservada à Lei Complementar, inconstitucionalidade material por abuso de poder ao expedir medida provisória sobre o tema e, por fim, inconstitucionalidade formal por esvaziar, na competência da União, competências legislativas e administrativas que caberiam aos demais entes federados.
Da Decisão da ADI
A primeira decisão proferida pelo STF nesta ADI foi a do Ministro Marco Aurélio, relator do processo, em sede de decisão limitar.
O STF tem 11 Ministros. Quando uma ação chega ao Supremo, um dos Ministros é sorteado (aleatório) para relatar o caso – basicamente é ele quem vai cuidar do processo até ele ser julgado, fazendo um relatório do caso e dando o primeiro voto entre os Ministros que examinarão o caso (há muitos outros detalhes sobre como funciona um processo no STF, mas que não cabe aqui discutir).
A decisão liminar é uma decisão provisória, que costuma ser tomada para evitar lesões a direitos de difícil reparação.
Pois bem, o Ministro Relator reconheceu a usurpação de competências, pela União, dos outros entes federativos e aceitou, parcialmente, o pedido de inconstitucionalidade (parcialmente, porque ele negou liminarmente os outros pedidos, que seriam julgados depois, quando da decisão definitiva):
Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.
Assim, o Ministro Relator optou por não extirpar a MP 926/20 do mundo jurídico, mas, por meio de uma interpretação que passa a ser obrigatória para interpretar a Lei a adequou ao texto constitucional. Do texto citado, aproveito para esclarecer que a Lei 9.868/1999 é a lei que regula o processamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
A cautelar foi submetida ao plenário do STF, com a manifestação de todos os Ministros, onde a decisão do Ministro Relator foi confirmada (ratificada), conforme consta da certidão de julgamento:
Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro Rivas; pelo amicus curiae Federação Brasileira de Telecomunicações – FEBRATEL, o Dr. Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues; pelo interessado, o Ministro André Luiz de Almeida Mendonça, Advogado-Geral da União; e, pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras, Procurador-Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 15.04.2020
O entendimento de que a MP 926/20pode subsistir como está, desde que interpretada conforme a Constituição, prevaleceu. Assim, qualquer norma fixada pela União no âmbito da Lei 13.979/2020 não pode vincular os demais entes federados, que podem legislar sobre o tema, inclusive em sentido diverso à lei federal, segundo seus interesses regionais e locais. Isso se dá por força do sistema de competências que explicamos anteriormente.
O tema da MP 926/20 (e da Lei 13.979/2020) é a saúde, um tema de competência comum dos três poderes, ou seja, todos podem legislar, observado o princípio da predominância dos interesses, vez que se trata de competência compartilhada pelos entes federativos. Determina a Constituição:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...).
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
Obedecendo a tal comando constitucional, a Lei do SUS (nº 8080/90) estabelece o mesmo:
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:
I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.
Ora, pelo sistema em vigor, não é possível vislumbrar que somente a União dite normas de saúde pública para o enfrentamento da pandemia. A União deveria ser o aglutinador de iniciativas, o unificador de ações, não o ceifador de vidas. Ocorre que a pandemia não atingiu e nem atinge (sim, a pandemia ainda existe e os primeiros sinais da segunda onda já são percebidos, conforme os jornais começam a mostrar: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/11/medica-do-hc-diz-que-ha-hospitais-lotados-por-covid-19-em-sp-e-apela-para-que-as-classes-a-e-b-tenham-responsabilidade.shtml) os Estados e Municípios de forma igual, de modo que é, no mínimo, racional, que o assunto seja tratado conforme as especificidades de cada lugar e, no máximo, observa os ditames constitucionais.
Cai por terra, portanto, a falsa alegação propalada pelo Presidente da República e seus asseclas (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/06/22/stf-nao-eximiu-governo-bolsonaro-de-acoes-contra-a-covid-diz-fux.htm) de que o STF teria limitado a ação da União a repassar dinheiro. O STF apenas esclareceu o óbvio, ou seja, de que a competência é de todos os entes federativos, observadas os detalhes de cada região/município.
A MP 966 e a responsabilidade do gestor público
A Medida Provisória 966 de 2020 (“MP 966/20”), prevê, entre outros pontos, que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento à pandemia e aos efeitos econômicos e sociais dela decorrentes, mas não define o que é erro grosseiro, o que poderia criar uma espécie de anistia ou salvo-conduto para os agentes públicos no combate a pandemia.
Por essa razão, foram ajuizadas diversas ações de inconstitucionalidade: pela Rede Sustentabilidade (ADI 6421), pelo Cidadania (ADI 6422), pelo Partido Socialismo e Liberdade (ADI 6424), pelo Partido Comunista do Brasil (ADI 6425), pela Associação Brasileira de Imprensa (ADI 6427), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6428) e pelo Partido Verde (6431).
O Ministro relator Luís Roberto Barroso determinou que o artigo 2º da MP 966/20 deve ser interpretado conforme a Constituição e, assim, determinou o que deve ser entendido como ato grosseiro. Neste sentido, ficou estabelecido que erro grosseiro é o ato administrativo que enseja violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em razão da inobservância (i) de normas e critérios científicos e técnicos; (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. Assim, todo aquele que não observar os critérios científicos no combate a pandemia, poderá ser responsabilizado.
Ainda segundo o ministro Luiz Fux, por mais que situação de combate da pandemia requeira celeridade na atuação do administrador e, para isso, a MP traga mais segurança para o seu atuar, esta não pode ser utilizada como carta branca para que os agentes públicos pratiquem qualquer tipo de ato irresponsável e que afronte aos direitos fundamentais à vida e à saúde. Disse textualmente: “O erro grosseiro previsto na norma é o negacionismo científico. O agente público que atua no escuro o faz com o risco de assumir severos resultados”.
O Ministro Relator também propõe que aquela autoridade que precisa decidir algo para combater a pandemia deverá exigir que as opiniões técnicas que levará em conta para tomar sua decisão deverão tratar expressamente das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis ao tema, tal como aqueles estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias, bem como da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. Disse o relator: "A não exigência de tais elementos torna a autoridade corresponsável pelos danos decorrentes da decisão, por faltar com dever de diligência imprescindível a lidar com bens de tamanha relevância".
Negar a ciência, portanto, dá ensejo à responsabilização do agente público.
Entram nesta categoria: atacar o isolamento social, promover medicamentos que não são comprovados cientificamente, atacar o uso de máscara, dizer que cuidar da saúde é uma maneira eficaz de combater a doença (histórico de atleta), dizer que o brasileiro é imune porque nada no esgoto ou que somos maricas porque temos medo de uma gripezinha.
Deixar de agir, por dizer que o STF determinou a competência como sendo exclusiva dos Estados e Municípios, além de ser mentira, como vimos anteriormente, também pode ser motivo para dar ensejo a responsabilidade, já que se ficar caracterizado que nada ou pouco foi feito para combater a pandemia (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/22/ministerio-da-saude-gastou-menos-de-um-terco-do-dinheiro-disponivel-para-combate-a-pandemia-diz-tcu.ghtml & https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/governo-gastou-menos-de-8-dos-recursos-para-covid-19-no-combate-direto-doenca-diz-tcu-24580520 & https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/23/oito-meses-apos-1-caso-governo-gastou-777-da-verba-destinada-a-pandemia.htm) pode ser visto como omissão do agente público ou, até mesmo, ação dolosa (com intenção) de não enfrentamento - por muito tempo faltaram, p.ex., remédios para procedimentos de ventilação artificial de pacientes com insuficiência respiratória (https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-30/no-brasil-da-cloroquina-faltam-21-remedios-para-pacientes-com-covid-19-nas-utis.html).
Improbidade Administrativa
A Lei 8.429/92 trata da Improbidade Administrativa. Referida lei tem por objetivo aplicar penalidades (sanções jurídicas) para os agentes públicos que pratiquem atos de improbidade administrativa durante o exercício de função pública.
Para fins da lei, são agentes públicos (artigos 2º e 3º da lei):
(i) todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em qualquer esfera da administração pública;
(ii) também aquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
Os atos de improbidade administrativa são:
(i) os que importam em enriquecimento ilícito,
(ii) os que causam prejuízo ou lesão ao Erário,
(iii) os que decorrem de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário; e
(iv) os que atentam contra os princípios da Administração Pública.
Mandar os militares fabricar cloroquina, remédio que não tem nenhuma eficácia cientificamente comprovada para combater a COVID-19, é prevaricar, pois implica em prejuízo ou lesão ao Erário Público (aos cofres públicos). Há um pedido de apuração de prática de improbidade do Presidente nesta esfera.
A pena, neste caso, é ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual o condenado seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos.
Prevaricação
O Código Penal estabelece que aquele que praticar ato de ofício para satisfazer interesse ou sentimento pessoa comete crime de prevaricação.
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Muitas coisas podem ser enquadradas aqui, como uma eventual intervenção na Polícia Federal para, de alguma forma, influenciar nas investigações contra os filhos do Presidente. Neste caso, contudo, pode ser que o Diretor da ANVISA, que determinou a suspensão dos testes da CoronaVac, seja enquadrado aqui, já que tudo demonstra que a decisão foi tomada para prejudicar politicamente o Governador de São Paulo, conforme se depreendeu da efusiva comemoração do Presidente com relação à decisão.
Crimes contra a saúde pública
Esses aqui falam por si só, também do Código Penal:
Epidemia
Epidemia
Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena - reclusão, de dez a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990)
§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.
§ 2º - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.
Infração de medida sanitária preventiva
Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
Aqui podemos incluir o Presidente da República, com suas constantes aparições sem máscara, incentivando aglomerações, e do próprio Ministro da Saúde (Gal. Pazuello).
Vacinação Obrigatória: verdade ou não?
A vacinação obrigatória foi autorizada pelo próprio Presidente da República, que assinou a lei de enfrentamento à pandemia:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)
(...)
III - determinação de realização compulsória de:
(...)
d) vacinação e outras medidas profiláticas;
(...)
Desta forma, tão logo seja desenvolvida uma vacina eficaz (ou mais de uma), os Estados e Municípios poderão organizar medidas compulsórias de vacinação, atendendo o princípio constitucional da prevenção (mencionado na ADI sobre a MP de responsabilização do agente público no combate à pandemia).
Mais que isso: negar a possibilidade de uma vacinação obrigatória é negar a lei que ele mesmo promulgou... E se ele vier a inviabilizar, efetivamente, a vacinação, estará negando a ciência e, portanto, dando margem para ser responsabilizado.
A título de curiosidade, outras normas já preveem a obrigatoriedade da vacinação, como no caso do Estatuto da Criança e do Adolescente. Até os militares são obrigados a tomar pelo menos 13 vacinas atualmente.
Aliás, nenhuma dessas normas seria sequer necessária já que a Constituição garante o direito à saúde, nos seguintes termos. Mas é salutar que existam essas normas infraconstutcionais que vão dando contornos ao conteúdo da ampla norma constitucional
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (Vide ADPF 672)
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
Existe alguma medida mais preventiva (já que tanto se fala em tratamento preventivo) do que a vacina? A Constituição, com fundamento na dignidade da pessoa humana, já garante a vacinação obrigatória - ainda que não coercitiva. E como toda ação tem uma reação, como dizem as leis naturais, a não vacinação importará em restrições.
Conclusões
O sistema jurídico é claro: negar a pandemia, negar a ciência no enfrentamento da pandemia é passível de responsabilização do agente/gestor público. Desta forma, há totais condições de, diante do desastroso enfrentamento da pandemia pelo Governo Federal, de os responsáveis serem responsabilizados.
Mesmo que não seja agora, após o termino do mandato, ele poderá ser responsabilizado. Se houver vontade.
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